Guatemala, a Primavera assassinada

Luís Carapinha

Assinalam-se este mês 80 anos da Revolução Guatemalteca. Também apelidada de Revolução de Outubro (em referência ao triunfo, a 20 de Outubro de 1944), foi um processo democrático-popular de avanços progressistas em amplos domínios. Realizado em dois tempos, de Junho a Outubro de 1944, o derrube do regime ditatorial – subordinado aos EUA, aos lucros da United Fruit Company (UFC) e à cartilha da Doutrina Monroe –, abriu portas a uma década de afirmação da soberania e de desenvolvimento, aliados à promoção da justiça social. Um período luminoso, inscrito na memória colectiva como os “Dez Anos de Primavera”, até sucumbir ao golpe de Estado de 1954 orquestrado pelos EUA contra o presidente eleito, Jacobo Árbenz. O que veio depois, sempre com o suporte de Washington, é mais uma página negra na história guatemalteca, de exploração e sanguinária ditadura militar. Décadas sombrias, prolongando-se até 1996, traduzidas em violações em massa dos direitos humanos e o genocídio do povo indígena.

Em Junho de 1944, a revolta popular derrubou o governo fascista do general Ubico mas não evitou o trespasse do poder para uma junta militar afim. A ditadura militar ao serviço dos grandes proprietários ilegalizara, em 1932, o primeiro partido comunista do país.

Os protagonistas do levantamento da Revolução de Outubro que sela o derrube da ditadura, entre os quais o próprio capitão Árbenz no seio de um grupo de jovens militares progressistas, representando sectores democráticos e patrióticos da burguesia, não assumiam um programa de ruptura com o capitalismo. As condições não haviam amadurecido. A Guatemala, sujeita aos interesses dos latifundiários e domínio monopolista dos EUA, apresentava uma economia atrasada, semicolonial, monoprodutiva, maioritariamente feudal, traços típicos de um capitalismo incipiente.

Assim, ambicionavam um processo emancipador rumo a um país democrático moderno, assente, no plano económico, numa política estatal de industrialização e desenvolvimento das capacidades produtivas internas e promoção da economia de mercado, dentro dos marcos do sistema capitalista. A confluência da agenda democrática e nacional com as demandas e o papel determinante da luta popular, impondo a alteração favorável da correlação de forças e levando à participação de comunistas no governo em 1951-54, permitiu avançar para transformações de alcance estrutural.

Enfrentando desde a primeira hora a reacção, o governo do primeiro presidente da Primavera democrática, Juan Arévalo (pai do actual presidente da Guatemala, Bernardo Arévalo, eleito em 2023), aprovou a nova Constituição e iniciou uma série de reformas progressistas. Não obstante contradições e limitações, como a manutenção de certas restrições a nível eleitoral, as mudanças tiveram impactos significativos na alfabetização e educação, saúde, segurança social, salários e melhoria das condições de vida dos trabalhadores. O Código do Trabalho de 1947 aboliu o regime de servidão do século XIX. O governo de Árbenz, eleito por ampla maioria, aprofundou este curso enquanto durou o seu mandato. A Reforma Agrária retirou terras ociosas ao latifúndio (incluindo à UFC) em benefício dos camponeses, a maioria indígenas. A sua influência transcendeu as fronteiras nacionais.

Os EUA assassinaram a democracia na Guatemala em 1954, com Eisenhower na Casa Branca. O golpe executado pela CIA, patrocinado pela UFC (os próprios irmãos Dulles, à frente da secretaria de Estado e da CIA, tinham altos vínculos à empresa multinacional), recorreu ao anticomunismo para fustigar o governo progressista. Embora o exército mercenário arregimentado pela CIA, proveniente das Honduras, tenha sido praticamente derrotado, Árbenz acabou por ceder sob a ameaça de uma invasão directa dos marines. A indecisão do governo, acossado pelo imperialismo, traduzia as contradições e limites da Revolução guatemalteca, mas não apagou o seu legado progressista e emancipador. Os EUA derrubaram Arbénz para entregar o poder a uma junta militar, fiel à oligarquia e ao monopólio da UFC. A ilegalização do Partido Comunista, desde 1952 Partido Guatemalteco do Trabalho, foi das primeiras medidas. Depois vieram os anos de chumbo da repressão fascista e atrocidades da política de terra queimada contra a guerrilha e resistência popular, com um saldo de 200 mil mortos e quase 50 mil desaparecidos.

O país jamais recuperou. O frágil processo de democratização trouxe a paz e deixou intacto o poder da oligarquia e dos grandes grupos económicos, alienados ao imperialismo. Mantém-se o fosso da desigualdade e alastra o pântano da corrupção. O poder mafioso tentacular tentou impedir a posse do actual presidente.

A Revolução Guatemalteca encerra ensinamentos válidos para as forças que hoje erguem as bandeiras anti-imperialistas e de grandes transformações sociais, num quadro em que os EUA intensificam todos os mecanismos de ingerência e pressão para manter os privilégios de uma hegemonia infame e anacrónica nas Américas.



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