Hélder Moutinho

«Nos dias de hoje a luta pela liberdade tornou-se universal»

É uma das vozes consagradas da sua geração. Fadista por inteiro, conhece bem as raízes do fado e sua evolução, sabe o quanto este foi já canção de protesto e intervenção social. Na Festa do Avante!, que define como uma «celebração da Liberdade», onde actuou já por várias vezes, Hélder Moutinho, que terá como convidado Ricardo Parreira, apresentará um espectáculo que será ele também de celebração: do momento maior e luminoso que foi a Revolução do 25 de Abril, neste ano em que se cumpre o seu 50.º aniversário.

«Acredito que os principais valores que o 25 de Abril nos trouxe estão centrados na palavra liberdade»

O espectáculo de fado que vai apresentar na Festa do Avante! pretende celebrar o 25 de Abril e mostrar que este género musical também foi uma canção de protesto. Porque é que sente a necessidade de mostrar esta vertente combativa do fado?

Exactamente porque, logo após o 25 de Abril, o fado foi completamente desconsiderado pelo povo português, em parte porque estava associado ao período do chamado "tempo da outra senhora". Era erradamente visto como uma canção do regime, e essa associação persiste até hoje quando se fala sobre a história do fado. No entanto, isso não corresponde à verdade.

O fado começou por ser uma canção que contava histórias, relatando o quotidiano e a sociedade da época. Assim, tornou-se uma forma de protesto e intervenção social.

Os fadistas cantavam nas ruas e nas tabernas sobre o quotidiano, como se estivessem a transmitir notícias, crónicas, e, simultaneamente, a expressar a opinião pública.

Com o trabalho realizado para a construção da grande exposição mundial de 1940, António Ferro, então ministro da Propaganda, conseguiu convencer Salazar e os seus ministros a impulsionar a única música que realmente representava a cultura popular portuguesa: o fado.

O plano consistia em encontrar uma série de tabernas, investir nelas substancialmente, criando assim os Restaurantes Típicos, onde o fado, como anfitrião, convidava o folclore e, em alguns casos, o fado de Coimbra.

Desta forma, os fadistas foram retirados das ruas, e passou a haver regras, como cada fadista ter de cantar três a quatro fados por apresentação, seguidos de um intervalo para servir os clientes. Sendo uma apresentação a solo, era também mais fácil a actuação da censura.

Posteriormente, passou a ser proibido cantar em tascas e tabernas que não fossem autorizadas pelo governo. Nas colectividades, o fado era permitido, mas sob a vigilância da censura.

Foi então que surgiram uma série de fados-canção com temas relacionados com o nacionalismo português, como Casa Portuguesa, por exemplo.

O fado, enquanto canção de protesto directo, com palavras dirigidas ao povo como recado ao governo, desapareceu. Em seu lugar, surgiram as canções da revista, que, nas entrelinhas, chegaram a reclamar contra esse processo, com fados como O Que Restou da Mouraria ou o Fado da Severa, entre outros, que lamentavam o facto de terem "matado" os fados nas tabernas e nas ruas, onde a expressão popular tinha vida. Este tipo de fado passou a ser conhecido como fado vadio.

Mais tarde, poetas literários (não populares) começaram a escrever para o fado, especialmente para Amália, Carlos do Carmo, Beatriz da Conceição, entre outros, com uma poesia repleta de metáforas, num tempo em que o povo já tinha mais educação e cultura. David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, João Dias, entre outros, trouxeram uma poesia mais erudita ao fado, com uma forte vertente de intervenção política e social.

Que exemplos de fados vão ser interpretadas para ilustrar isso? De que falam essas letras?

Vários poemas do João Monge falam exactamente disso. Como por exemplo uma quadra sobre a criação dos restaurantes típicos e da proibição do fado nas tascas e nas vielas.

Vielas da Vida

Já Fui um dia Corrido

Da Rua onde Nasci

Só por alguém ter ouvido

Que eu já não era dali…

Ou os temas que cantei na Festa dos 100 anos do PCP Amor sem Lugar e Prenda Rara.

Um Poema do João Dias por exemplo, Chamaram-me Ovelha Negra, um Poema de José Carlos Ary dos Santos Poeta Castrado Não com um improviso sobre o Fado Menor e uma Milonga Argentina do Atahualpa Yupanqui.

Entre outros, também com o repertório do Ricardo Parreira que vai ser meu convidado especial neste espectáculo.

Também seleccionou para este espectáculo, intitulado Freedom, canções de protesto ou de intervenção, da área do fado, nacionais e estrangeiras. Que critérios seguiu para as escolher?

Nos dias de hoje a luta pela liberdade tornou-se universal e tudo o que se passa no mundo é importante para o que se passa aqui. Também sei que a Revolução de Abril pode ter sido inspirada noutras revoluções mas ela própria também foi um grande exemplo para muitos.

É arriscado um artista que ganhou reputação como fadista interpretar outros géneros musicais? Como é que o “fadista” Hélder Moutinho decidiu ser também o “cantor popular” Hélder Moutinho?

Nunca serei um cantor popular. Serei sempre um fadista. Isso vai ser bastante visível nas interpretações, O Fado está sempre presente. No entanto, música é sempre música e é mais fácil ser-se fadista e cantar outras músicas do que ser cantor de outras músicas e (ser fadista) ao cantar fado (risos).

Hélder Moutinho na Festa do Avante! de 2021

O Hélder Moutinho era uma criança quando se deu o 25 de Abril de 1974. A decisão de montar um espectáculo de celebração desse dia impõe esta pergunta: como é que, 50 anos depois, vê a Revolução dos Cravos?

Acredito que os principais valores que o 25 de Abril nos trouxe estão centrados na palavra liberdade, mas no seu sentido mais amplo: ser livre por ser livre, mas também ser livre do racismo, da xenofobia, da homofobia, da guerra, do capitalismo, da escravatura, entre outros. Ser livre para pensar em solidariedade e compreensão. Ser livre não para atacar o próximo e protestar contra a liberdade dos outros, mas para podermos fazer aquilo que nos traz mais conforto na vida, para nos defendermos e para crescermos como seres humanos.

Essa liberdade durou 25 anos ou talvez menos para alguns.

É claro que não vivemos sob a opressão de uma ditadura como antes do 25 de Abril em Portugal. Muitas coisas evoluíram em várias direcções: vivemos numa democracia e temos contacto com o mundo em tempo real. Temos oportunidades que os meus pais não tinham. Podemos votar e até cometer grandes asneiras com isso (risos).

No entanto, as guerras voltaram e, com elas, uma grande hipocrisia, muitos interesses ligados a todas as indústrias que acabam por lucrar com isso, muito ódio, muita opressão e uma grande falta de esperança na vida.

Como acredito que a história se repete - vestida de outra maneira, mas repete-se - acho que temos de ter muito cuidado, porque grande parte daqueles valores sobre a liberdade de que falo estão a desaparecer aos poucos: o racismo, a xenofobia, a homofobia, tudo isso está a crescer. E os direitos humanos estão a fugir-nos por entre os dedos, com cada vez menos respeito mútuo. Os interesses políticos e financeiros estão acima da ética e dos direitos humanos. E tudo isto não está apenas nos políticos, está nas pessoas... está em todos nós. Todos nós queremos mais poder, mais dinheiro, mais conforto, e quando isso acontece, esquecemos-nos das nossas raízes, do que já fomos e do que tivemos de fazer para sobreviver. E, com isso, lá vamos novamente perdendo a nossa liberdade, achando que a estamos a ganhar com o poder, quando, na verdade, a estamos a perder cada vez mais. Estamos a ficar fracos...

Tem actuado na Festa do Avante! algumas vezes. Que opinião formou desta iniciativa? Ela é relevante para os artistas portugueses?

Claro que sim.

É a celebração da Liberdade do Povo Português e de tudo o que nela se relaciona: A Paz, a Solidariedade, a amizade, a Luta contra todas as formas de opressão do ser humano e a luta pelos direitos humanos.

 



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