Gaza, Meu Amor (Gaza mon amour, 2020), dirigido pela dupla Arab e Tarzan Nasser, teve honras de estreia no Festival de Cinema de Veneza. No Festival Internacional de Cinema de Toronto, venceu o Prémio NETPAC, a Rede para a Promoção do Cinema Asiático (Network for the Promotion of Asian Cinema), de melhor filme asiático. Foi co-produzido pela portuguesa Ukbar Filmes e rodado na Jordânia e em Portugal. A Palestina, a Alemanha, e a França completam a lista dos países co-produtores do filme. De qualquer modo, Gaza, Meu Amor é essencialmente um filme palestiniano. Daí o Ministério da Cultura Palestiniano o ter escolhido como submissão ao Óscar de Melhor Filme Internacional.
O filme só estreou em Portugal em 2022. Hoje é difícil olhar para Gaza, Meu Amor sem ter em conta a actualidade. Não é apenas o facto de chegarem poucos filmes da Palestina a Portugal, além das obras de Elia Suleiman. É a realidade das ruínas e dos milhares de mortos e feridos que se acumulam na Faixa de Gaza desde a sangrenta e impiedosa invasão israelita de 27 de Outubro de 2023, em resposta aos ataques terroristas coordenados pelo Hamas no sul de Israel no dia 7 do mesmo mês. A verdade é que este conflito armado é indissociável da ocupação israelita de territórios palestinianos, do bloqueio de Gaza, da expansão de colonatos israelitas ilegais, e da violência dos colonos, sobretudo na Cisjordânia. Tudo isto está sempre presente em Gaza, Meu Amor, de forma mais directa ou indirecta, em primeiro plano ou em pano de fundo.
O título do filme evoca claramente Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima mon amour, 1959) de Alain Resnais, mais como referência vagamente temática do que cinéfila. Esse filme mostra um homem japonês e uma mulher francesa que se encontram até se separarem, num lugar marcado pela guerra: Hiroshima. Sobre ela e ele persiste a sombra da memória do bombardeamento atómico do Exército dos Estados Unidos nessa cidade, a 6 de Agosto de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. Persiste também a dificuldade em recordar. Pelo contrário, em Gaza, Meu Amor, o casal vai-se cruzando até um alegre desenlace final, quando o amor vem acompanhado de um riso contagiante.
Issa (Salim Daw) é um pescador de 60 anos que nunca chegou a casar. A irmã não desiste de casar este homem religioso e traz grupos de mulheres para o visitarem como pretendentes. Issa, por sua vez, está apaixonado por Siham (Hiam Abbass), uma costureira viúva que vive com a filha divorciada. Issa e Siham sobrevivem através do seu trabalho. A pesca e a costura são dois sectores que enfrentam grande dificuldades em Gaza, onde muitas das pessoas vivem na pobreza, numa situação precária permanente, e em campos de refugiados. A ficção tem esta raiz concreta.
O elemento mais inusitado da narrativa é, curiosamente, factual: em 2014, a rede de um pescador de Gaza apanhou uma estátua fálica do deus grego Apolo. É o mesmo que acontece a Issa em Gaza, Meu Amor e que faz com que a personagem ache que a sua sorte mudou. Vive sozinho. Tem de vender o peixe barato. O melhor amigo dele é um jovem comerciante que decide rumar à Europa em busca de um futuro melhor para si e a sua família. Talvez tudo venha a ser diferente depois da descoberta da estátua. A verdade é que o artefacto só lhe traz problemas, nomeadamente com as forças policiais. O filme vai cosendo pacientemente duas estórias basicamente paralelas, que se vão intersectando, mas que só convergem realmente no fim. Sobressai uma tristeza suave e uma ternura atenta que são o solo do qual pode despontar a alegria, no olhar do filme sobre Gaza e estas personagens. Apesar de tudo, o sofrimento não conseguiu asfixiar a humanidade neste lugar.