- Nº 2645 (2024/08/8)
Eleições na Venezuela

Direito de decidir, livre de ingerências!

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Regressado da Venezuela, onde acompanhou as eleições presidenciais, João Pimenta Lopes, em entrevista ao Avante!, conta o que observou nos centros de votação, esmiuça aspectos reveladores da ingerência externa contra a Venezuela bolivariana e da tentativa de golpe de Estado da extrema-direita, mostrando-se convicto de que as alegações por esta invocadas «não têm fundamento» e que importa agora é «cumprir os trâmites legais, em conformidade com a lei eleitoral e a Constituição».

Centenas de milhares de pessoas participaram na Grande Marcha em Caracas de apoio à paz e ao Presidente Nicolás Maduro

Estiveste na Venezuela a acompanhar a realização das eleições presidenciais de 28 de Julho. Que impressão tens desse importante momento?
É a segunda eleição presidencial que tive oportunidade de acompanhar na Venezuela, e tal como em 2018, a convite do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), que naturalmente solicitou a minha acreditação como acompanhante eleitoral junto do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), como aconteceu com muitas centenas de acompanhantes e observadores internacionais presentes. Outros, incluindo deputados do Parlamento Europeu, em vez de seguirem os trâmites normais para serem acreditados como acompanhantes, não o fizeram, optando por montar uma provocação no aeroporto de Caracas.
Mas relativamente à tua questão… O que tive oportunidade de observar foi um ambiente de grande tranquilidade democrática e de mobilização popular no acto eleitoral, nomeadamente nos diversos centros de votação que visitei em Caracas. No final do dia, as autoridades venezuelanas reportaram pouquíssimos casos de atropelo à legalidade nas mais de 30 mil mesas de voto que compõem os mais de 15 mil centros de votação por todo o país. Não fora a pré-anunciada colocação em causa do processo eleitoral e apelo à desestabilização por parte da extrema-direita golpista, logo à beira do encerramento das urnas e do arranque do processo de contagem de votos, operação em que se insere o ataque ao sistema informático do CNE, e teríamos, na minha opinião, assistido à divulgação dos resultados nesse mesmo ambiente de tranquilidade democrática que marcou toda a jornada eleitoral. Julgo mesmo que o que levou à divulgação pelo CNE dos resultados eleitorais, estando apuradas 80% das mesas, foi a consciência do ataque informático e de toda a operação de que estava a ser alvo o normal desenrolar do processo eleitoral.

Muito se tem falado sobre o sistema de votação venezuelano. Tens alguma apreciação?
Trata-se, em rigor, de um sistema de votação misto, de voto electrónico e em papel. A mesa de voto tem o que designam de circuito em “ferradura”. O eleitor apresenta o seu bilhete de identidade à mesa, que é verificado pela impressão digital. Procede ao computador, escolhendo em quem quer votar, opção que tem que confirmar, ficando registado electronicamente o seu voto. Este é ainda reconfirmado em papel, impresso nesse momento, que o eleitor verifica, constituindo boletim de voto que dobra e coloca em urna. Seguidamente, assina o caderno eleitoral onde coloca ainda a sua impressão digital, validando a sua participação.
No fecho das urnas, os dados do voto electrónico são enviados para o CNE, confirmada a coincidência do número de votos descarregados electronicamente e em urna.
Em 54% das urnas, abrangendo todos os centros de votação, é feita ainda uma verificação dos votos impressos. Assim se valida se o voto electrónico tem correspondência ao voto em urna.
Todo este processo é validado em acta, rubricada pelos representantes de todas as forças políticas que compõem a mesa e delegados, e entregue ao CNE.

A candidatura de Edmundo González não reconhece os resultados, alegando não terem sido apresentadas as actas eleitorais. Que fundamento têm tais alegações?
Na realidade o candidato foi Edmundo González, mas a protagonista é Maria Corina Machado. Uma figura da extrema-direita golpista que sucede a Juan Guaidó e que está inabilitada pelas autoridades judiciais de exercer responsabilidades públicas porque representou ilegalmente o país em estruturas internacionais, participou na operação “Guaidó”, incluindo na entrega de activos da Venezuela, para além de ter apelado à intervenção militar estrangeira e à imposição de sanções contra o país.
Estou convencido que as alegações da extrema-direita não têm fundamento. Importa referir que o procedimento eleitoral decorre de acordo com a lei e não como este ou aquele partido, entidade ou protagonista determinam. Como referi, as actas são assinadas pelos elementos que compõem a mesa ou delegados, e que representam as diversas forças políticas. O que importa agora, é que se possam cumprir os trâmites legais, em conformidade com a lei eleitoral e a Constituição. Face ao atraso criado pelo ataque informático ao processo de apuramento pelo CNE, e para assegurar um cabal esclarecimento, o processo foi, entretanto, e a pedido do Presidente Nicolas Maduro, colocado sob a alçada do Supremo Tribunal de Justiça, a quem todas as forças políticas devem entregar as actas que têm em seu poder, para serem confirmadas – o que a candidatura de Gonzalez se recusou até ao momento a fazer. Recorde-se que as autoridades venezuelanas têm denunciado que os números apresentados por Corina Machado não correspondem à realidade.
Ademais importa referir que a extrema-direita golpista fomentou desde antes do acto eleitoral a ideia, amplamente difundida pela comunicação social do país e internacional, que o resultado estava já definido à partida, apresentando as suas “sondagens” como se da efectiva vontade popular expressa nas urnas se tratasse. E tal como se verificou em 2019, com o seu fantoche Guaidó, os EUA vêm de novo acenar com ditas “evidências irrefutáveis”, para criar o seu novo “Guaidó”.

João Pimenta Lopes

E como é que essa operação foi sendo alentada?
Repara, houve vários sinais nesse sentido. Romperam com o Acordo de Barbados entre o governo e a denominada Plataforma Unitária Democrática (PUD). Não assinaram o Acordo de Reconhecimento de Resultados, promovido pelo CNE, que foi subscrito por 8 dos 10 candidatos, visando a garantia da tranquilidade, a rejeição da violência e da interferência estrangeira, o reconhecimento dos resultados eleitorais no quadro legal e constitucional, o respeito internacional pela soberania do país, o levantamento das sanções – um acordo que não foi assinado por Edmundo González, o candidato da PUD, onde a extrema-direita se concentra, e por Enrique Márquez, candidato apoiado pelo PCV. Divulgaram “sondagens” a partir das quais queriam pré-determinar e estabelecer os resultados das urnas. Criaram um “centro” paralelo ao CNE, para apresentar os “resultados”, ao mesmo tempo que era efectuado um ataque ao sistema informático do CNE, que atrasou o processo de contagem.

Como vês o papel protagonizado nomeadamente por parte dos EUA e da UE?
Muito haveria a dizer sobre a ingerência externa contra a Venezuela bolivariana. Trata-se de um processo de décadas liderado pelos EUA, apoiado pela UE e alguns governos na América Latina, particularmente de direita e extrema-direita, articulado com a extrema-direita golpista, incluindo com os seus representantes no exterior.
Recordo, por exemplo, que em 2019, o Conselho da UE só não reconheceu o fantoche Guaidó como “presidente” da Venezuela porque o então governo italiano objectou. No entanto, 20 governos de países que integravam a UE fizeram-no, incluindo o Governo PS, seguindo vergonhosamente a aldrabice ensejada pelos EUA com o suporte de governos de direita e extrema-direita latino-americana, que ficariam conhecidos pelo “grupo de Lima”. Uma posição que silenciosamente meteram no saco em Janeiro de 2021. Recorde-se que o actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, participou com Guaidó na encenada farsa na fronteira da Colômbia com Venezuela, em que aqueles que apelavam e apoiavam o bloqueio económico e financeiro da Venezuela, que atingia gravemente as condições de vida do povo venezuelano, incluindo da comunidade portuguesa na Venezuela, ao mesmo tempo, acenavam cinicamente com “ajuda humanitária”.

Que posições adoptaram os países na América Latina e Caraíbas?
Há posicionamentos diferenciados. Desde o reconhecimento dos resultados com a vitória de Nicolás Maduro por países como Cuba, Honduras, Nicarágua ou Bolívia, valorizando a ampla participação popular e a normalidade do processo eleitoral. A países que, alinhando com os EUA, procuram reeditar o “grupo de Lima”, ingerindo-se de forma aberta, como se viu, por exemplo, na Argentina, com o assédio à Embaixada da Venezuela protagonizado no próprio dia das eleições pela Ministra dos Negócios Estrangeiros, e que tem o seu expoente no Perú que reconheceu o candidato da extrema-direita golpista, tentando replicar o processo de 2019 com o fantoche Guaidó. Temos ainda a posição conjunta do Brasil, Colômbia e México, que valorizando o acto eleitoral e a participação popular, colocam que as controvérsias sobre o processo eleitoral devem ser dirimidas no âmbito das instituições da República Bolivariana da Venezuela.

Recentemente, tiveram expressão na comunicação social notícias sobre posicionamentos do PCV. O que terias a dizer sobre isso?
É conhecido o progressivo afastamento do PCV quanto ao processo bolivariano, a ponto de ter rompido em 2020 com o Grande Pólo Patriótico, que além do PSUV, integra outros partidos e forças políticas. O PCP teve oportunidade de se pronunciar sobre estes desenvolvimentos [Nota da Redacção: noticiada no Avante! de 24 de Agosto de 2023], sublinhando sempre a importância do diálogo entre as forças revolucionárias e progressistas venezuelanas, no respeito pelas suas diferenças, com vista à defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo venezuelano, da soberania e independência da Venezuela, perante a permanente ingerência e agressão do imperialismo e a acção da extrema-direita golpista.
A solidariedade com a luta do povo venezuelano, pelo seu direito a decidir livremente o seu próprio destino, com a sua aspiração a uma Venezuela de paz e progresso social, não significa que o PCP não tenha consciência de problemas, contradições e insuficiências no processo bolivariano, que corajosamente tem resistido e prosseguido ao longo de 25 anos.
Como é compreensível, a solidariedade com o processo bolivariano não é sinónimo de apoio ou acordo com todos os aspectos e opções da política do governo venezuelano. Mas a avaliação própria do PCP sobre este processo não o levará para uma qualquer posição que o associe às manobras do imperialismo e da extrema-direita venezuelana. O PCP recusa-se a fazer coro com os que tendo pré-declarado a vitória do candidato de extrema-direita agora recorram a todas as manobras de carácter golpista, incluindo com recurso a violência fascizante, para alcançar o que ao longo de 25 anos não conseguiram.

Na tua opinião o que se coloca como essencial neste momento?
Em primeiro lugar, a necessária compreensão, tomada de consciência e desmontagem da ampla campanha de desinformação e manipulação que está a ser promovida pela extrema-direita golpista, com os EUA e toda a sua panóplia de seguidores, incluindo os órgãos de comunicação social e a sua turba de comentadores que estiveram em todos os golpes e operações de desestabilização contra a Venezuela.
Em segundo lugar, a expressão da solidariedade com a Venezuela bolivariana, com as forças revolucionárias e progressistas venezuelanas, com a luta do povo venezuelano em defesa do seu direito de decidir, livre de ingerências externas, o seu caminho em defesa da paz, da soberania e independência da sua pátria, do seu direito ao desenvolvimento e ao progresso social.

 

Bloqueio criminoso


Falaste do bloqueio económico e financeiro imposto pelos EUA contra a Venezuela…
Ora bem! São 930 as sanções unilaterais, com carácter extra-territorial – ou seja, as entidades terceiras exteriores aos EUA que não aplicarem as sanções são alvo de medidas de represália por parte das autoridades norte-americanas – e ilegais, ou seja ao arrepio do direito internacional, impostas pelos EUA e seguidas pela UE, com imensos e gravosos impactos económicos sobre o país, de que alguns, incluindo a comunicação social, nunca falam. A Venezuela perdeu só na redução da exportação de petróleo, principal receita do país, dezenas de milhar de milhões de dólares. Já para não falar do roubo de recursos, reservas de ouro no Reino Unido no valor de 10 mil milhões, ou de activos em Portugal no Novo Banco no valor de 1,5 mil milhões. Um bloqueio económico e financeiro com brutais impactos sociais e no investimento, com especiais repercussões durante a pandemia de COVID-19, durante a qual as sanções foram mantidas. Ora se alguma gente anda tão preocupada com o povo venezuelano, e ao Governo português deveria igualmente importar a comunidade portuguesa neste país, o que deveriam defender era o fim do bloqueio, das sanções, e o estabelecimento de efectivas relações de cooperação com a Venezuela.