- Nº 2645 (2024/08/8)

A Música e a Paz

Argumentos

Ainda de olhos húmidos pelo horror da 2.ª Grande Guerra e na angústia do mundo não ter aprendido ainda com o conflito, os europeus assistiram à estreia em 1962 do “War Requiem” do inglês Benjamin Britten: uma missa de defuntos dedicada à morte da guerra.

Misturando o tradicional texto litúrgico com poesia pacifista de Wilfred Owen que coteja as palavras bíblicas, Britten, objector de consciência inglês, corajosamente assumido em plena guerra, e Owen, obrigado a combater e morto na 1.ª guerra mundial, vieram municiar a obra com os seus exemplos. Ainda a relevar a simbologia da coexistência de duas orquestras (sinfónica e de câmara) com um coro gigantesco e três solistas (originalmente soprano russo, tenor inglês e baixo alemão), e a estreia na reconstruída catedral de Conventry (arrasada pelas bombas alemãs).

É a Música um veículo poderoso para a Paz e para a luta que esta nos merece?

Sim e… não, como toda a Arte no contexto social envolvente, no âmbito de classe possidente do momento histórico.

A poucos dias da Festa, sabemos da força da entoação colectiva de um Avante, camarada! ou de uma Internacional. “Eles” também o sabem e desde há muito: pensemos no uso que Hitler fez da Música para alienar multidões…

Só que o futuro é só um: o do progresso. E progresso é paz, não guerra; é a emancipação do Homem e não o obscurantismo, com as oponentes “carnes para canhão”, lançadas em lutas sempre fratricidas.

E a Arte, com a Música incluída, não resiste a longo aprisionamento, ao travar da História ou mesmo retardar-lhe o passo: haverá sempre quem lembre “aos amigos para mudarem de tom, de som”, como fez Beethoven na inusitada entrada de uma voz solista na sua 9.ª sinfonia.

E se a prática coral pode ser excelente exemplo da cooperação entre vozes e idiossincrasias na construção de um som colectivo; se o famoso “El Sistema” bolivariano de orquestras, acessíveis a todos os alunos de música sem qualquer obstáculo de acesso, é exportado – às escondidas… para tantos países com sucesso, num exemplo de emancipação social pela prática musical de qualidade; se a Orquestra West-Eastern Divan, criada por Daniel Baremboim, pôs jovens judeus, palestinianos e árabes em geral a dar concertos inesquecíveis por todo o mundo, arrasando exemplarmente os actuais grotescos tambores do horror, temos entre nós um fenómeno que merece algumas linhas, ainda no capítulo de intervenção pela música: uma vez mais a nossa “Carvalhesa”!

As “carvalhesas” são irresistíveis danças, tocadas por gaiteiros (conjunto de gaita-de-foles, caixa e bombo), sem letra associada. A “Carvalhesa” que conhecemos, segundo recolha de Kurt Schindler, oferecida ao PCP pelo seu militante Michel Giacometti e mais tarde arranjada por Fausto Bordalo Dias na sua versão mais popular, não sendo cantada, “não possui qualquer significado interventivo”, como é defendido por musicólogos para quem a música só ganha um sentido com letra.

Quem vai à Festa percebe facilmente que, pelo menos, esta teoria terá excepções (!): seguindo a sua vocação inicial, a “Carvalhesa”, às primeiras notas, é mola impulsionadora de multidões para a dança!

Além disso a “Carvalhesa”, pela sua popularidade e cunho etno-musical genuíno, resiste na sua jovial funcionalidade ao afogamento criminoso encetado em força pela música comercial de má qualidade, que tenta separar o cidadão, quer da sua música tradicional, quer do património musical de todos os tempos a que tem direito e necessidade. Na Festa recria de certa maneira a história e a evolução da Música com o posicionamento do Homem perante ela: solta em todos a telúrica pulsão primária da Dança, nos primórdios ligada intimamente à Música, e que, por necessidade de especialização instrumental e crescente abstracção humana, se foi sacrificando; deixa democraticamente o seu usufruto à escolha livre do público – a) exprimindo fisicamente as suas pulsões; b) fazendo-o prudentemente, abrindo os olhos em simultâneo para o espectáculo colectivo; c) procurando em exclusivo um local elevado com visão privilegiada sobre o espectáculo inolvidável.

Numa penada, temos a origem da Música umbilicalmente ligada à Dança, a possibilidade morna de podermos usufruir em simultâneo do movimento e do espectáculo e, por último, a posição de público solidário e vibrante com o quadro espectacular observado.

No meio de tudo isto, é claro, a Paz e a alegria de viver: o futuro será sempre nosso.

Fausto Neves