- Nº 2642 (2024/07/18)

Pablo Neruda: nos 120 anos de um poeta e Nobel da Literatura comunista

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Pablo Neruda, aqui com Salvador Allende, foi um empenhado construtor da Unidade Popular

Comemoram-se, este ano, os 120 anos do nascimento de Pablo Neruda, poeta, memorialista e dramaturgo chileno de projecção internacional, Prémio Nobel da Literatura em 1971, amplamente traduzido para inúmeras línguas. Um poeta que, em Portugal, tem conhecido certa popularidade entre as pessoas que lêem, a qual fica, em parte, a dever-se à qualidade dos seus tradutores, eles próprios poetas e não só: Fernando Assis Pacheco, José Bento, Luís Pignatelli, Albano Martins, Alexandre O’Neill, Nuno Júdice, Arsénio Mota, José Viale Moutinho, Rui Lage e outros. Dever-se-á também à magnífica biografia escrita por Volodia Teitelboim – escritor e Secretário-Geral do Partido Comunista do Chile (PCC) entre 1990 e 1994 – que seria editada no nosso país, em 2004, pela editora Campo das Letras. E talvez ainda a três filmes: O Carteiro de Pablo Neruda (1994), de Michael Radford, baseado numa ficção de Antonio Skármeta; Neruda, diário de um fugitivo (2014), de Manuel Basoalto; e ainda Neruda (2016), de Pablo Larraín, este centrado na fuga do poeta, já na clandestinidade, rumo ao exílio, em 1948-1949. O que, neste caso, acontecera após a perseguição que lhe é movida pelo governo autocrático de González Videla, na sequência de uma intervenção muito crítica e de uma carta-aberta do então senador comunista que Neruda já era (filiado no PCC desde 1945). Entretecendo realidade e ficção, estes filmes, somados à musicalização do Canto Geral pelo compositor grego Mikis Theodorakis (1925-2021), ajudaram a conferir um halo lendário ao que foi a extraordinária aventura humana, artística e de lutador comunista de Pablo Neruda.

Nascido a 12 de Julho de 1904, em Parral, aos dois anos, já órfão de mãe, vai viver com a irmã e o pai, ferroviário, para Temuco, no centro da histórica Araucanía, a terra tradicional dos índios Mapuche. Aí completa os estudos primários e liceais e conhece a grande poetisa Gabriela Mistral, que o influenciará com sugestões de leituras. Aos 16 anos, vai estudar para o Instituto Pedagógico de Santiago. Sendo o seu nome Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, ficaria contudo conhecido pelo pseudónimo Pablo Neruda, mais tarde nome legal.

Exerce funções diplomáticas na Birmânia (actual Myanmar), em Ceilão, em Java, em Buenos Aires (onde conhece Federico García Lorca), em Madrid e Barcelona, em Paris, no México, e, já perto do fim da vida, de novo em Paris, para onde foi nomeado embaixador, em 1971, pelo governo de Unidade Popular de Salvador Allende. Eleito senador, logo em 1945, Neruda torna-se um nome incontornável da história contemporânea do Chile e da luta internacionalista pela paz. E será sempre redutor sumariar o seu percurso político de combatente pelos direitos dos operários e camponeses chilenos, por uma sociedade socialista e contra o imperialismo.

Como escreveu Fernando Assis Pacheco, logo na juventude, em Santiago, a figura de Neruda torna-se popularíssima: «um claro talento poético coexiste nele com a vocação de activista político.» É presidente da Federação de Estudantes do Chile, em 1921. Em Madrid, 1935, convive com poetas da chamada Geração de 27 (Alberti, Lorca, Cernuda, Aleixandre, Bergamín…) que profundamente o marcam, sofrendo um choque com o assassinato de Federico pelos fascistas, perto de Granada, em 1936. Participa em Valência e em Madrid no II Congresso Internacional dos Escritores para a Defesa da Cultura (1937) – fundamental na afirmação da unidade e do internacionalismo antifascistas dos intelectuais durante a Guerra Civil de Espanha –, iniciativa em cuja organização desempenha papel de relevo. Já como cônsul em Paris, ao serviço do governo chileno da Frente Popular, trabalha activamente para organizar a fixação de exilados espanhóis em países da América Latina. Mais tarde, como senador, combate González Videla e, perseguido, entra na clandestinidade, à semelhança doutros comunistas. Numa lendária fuga, atravessa os Andes a pé e a cavalo, com a ajuda de militantes do PCC e de camponeses araucanos. Participa, durante o exílio, em 1949, no I Congresso Mundial dos Partidários da Paz e em eventos político-culturais de cariz internacionalista, na URSS e noutros países, tanto da Europa de Leste como da Europa Ocidental. Juntamente com Picasso e com o cantor e actor negro norte-americano, Paul Robeson, recebe em 1950 o Prémio Internacional da Paz. Em 1960, apoia a Revolução Cubana com os lucros da edição, em Havana, do livro Canción de Gesta. No seguimento de numerosos prémios nacionais e internacionais outorgados à obra, de tributos vários e de doutoramentos honoris causa pelas Universidades de Santiago do Chile e de Oxford, é designado, em 1969, candidato à Presidência da República do Chile pelo PCC. Desiste em favor do candidato socialista, apoiando activamente o futuro presidente Salvador Allende e, a seguir, o governo da Unidade Popular. Em 1973, ainda publica Incitamento ao Nixonicídio e Louvor da Revolução Chilena (traduzido para português por Alexandre O’Neill, em 1975), violento libelo poético denunciando o imperialismo norte-americano, o seu rol de crimes contra a humanidade (no Vietname, na América Latina…) e a pilhagem de recursos naturais em diversos continentes e países. Exemplo paradigmático: o cobre no Chile, cuja exploração a Unidade Popular nacionaliza e estatiza em 1971.

É sabido que o golpe militar fascista liderado por Augusto Pinochet, com o respaldo norte-americano e o apoio da CIA, levou ao derrube violento do governo de Unidade Popular e à morte de Salvador Allende, em 11 de Setembro de 1973. Iniciou-se um período de terror no Chile, com prisão e assassinato de milhares de pessoas, a destruição das conquistas da Revolução Chilena e a imposição de privatizações e de um quadro económico capitalista de matriz neoliberal. Já muito doente com cancro, Pablo Neruda falece a 23 de Setembro, sendo a sua famosa casa de Isla Negra assaltada por um grupo de extrema-direita. Dá-se o saque da biblioteca, do arquivo e das colecções marinhas do autor do Canto General – tal como já tinha sido saqueada «La Chascona», a casa de Santiago, com queima de livros. Realizados sob os olhares de atiradores do exército, o velório e o funeral do poeta, onde é entoada A Internacional, convertem-se em impressionante manifestação de resistência antifascista, que teve como resultado o encarceramento e desaparecimento de numerosos participantes.

É conhecido, hoje, o processo judicial que o PCC continua a ter em andamento para cabal apuramento das circunstâncias do desenlace do autor de Os Versos do Capitão. Está demonstrado que o seu corpo continha uma bactéria que lhe acelerou a morte, num momento em que o poeta equacionava ainda exilar-se no México, onde provavelmente se tornaria um símbolo da resistência ao regime de Pinochet. A equipa jurídica do PCC exige hoje procedimentos concretos conducentes a um esclarecimento até às últimas consequências, um deles relacionado com a determinação e condenação dos indivíduos que intervieram no crime, apontando elementos sobre quem poderia estar directamente ligado à administração da injecção que acabaria por vitimar o poeta – à semelhança do que ocorreu com Archibaldo «Chito» Morales Villanueva, respeitado jornalista e simpatizante do PCC, também ele assassinado no presídio por administração de «Persantín», em Novembro de 1973.

Pablo Neruda legou-nos numerosos títulos na área da poesia, um magnífico livro autobiográfico de memórias, Confesso que Vivi (1975), e outro de dispersos que complementa o anterior, Nasci para Nascer (1978), ambos póstumos – como póstumos são alguns volumes de poemas, por exemplo, o Livro das Perguntas (2008), obra encantadora, de ressonância quase infantil e lúdica, em que talvez ecoe a leitura das greguerías do espanhol Ramón Gomez de la Serna (1888-1963). Deixou-nos ainda, de 1967, uma peça de teatro/libreto, Fulgor e Morte de Joaquín Murieta: bandido chileno assassinado na Califórnia a 23 de Julho de 1853 (2007), que Sergio Ortega pôs em música.

Tratando-se de uma produção poética prolífica, desde a estreia em livro, em 1923, com Crepusculário (2005), descortinam-se nela diferentes fases que aqui não cabe desenvolver, mas que não são alheias ao simbolismo e à vivência asiática do poeta; nem ao relacionamento com as poéticas da Geração de 27 (Lorca sobretudo) e com a influência que o Siglo de Oro espanhol (1550-1700) exerceu sobre essas vozes; nem às vanguardas do início do século XX, em especial o surrealismo (muita da escrita de Neruda caracteriza-se por um ímpeto discursivo, metafórico e simbólico invulgar, que se prende com certa libertação verbal que o surrealismo veio favorecer – leia-se Residência na Terra (2006), de 1935, simultaneamente surreal e trágico). Refira-se, no entanto, a coexistência de cinco eixos fundamentais. Por um lado, o veio passional cuja intensidade erótica é traduzida por meio de imagens poderosas e originais. Encontramo-lo em obras como Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada (1974), de 1924, Os Versos do Capitão (1996), de 1952, ou Cem Sonetos de Amor (2004), de 1959, que impõem Neruda como grande poeta do amor. Por outro lado, a atenção dignificadora ao «elemental» e ao humilde, em poemas belíssimos como os de Odes Elementares (1998), de 1954 (Ode à cebola, Ode ao tomate, Ode à terra, Ode ao mar, mas também Ode ao livro, Ode à poesia…). O veio hispano-americano, por seu lado, tem expressão maior no monumental cruzamento de lirismo e de epicidade do Canto General, de 1950 – Canto Geral (1998), na notável tradução de Albano Martins, que nele realça os ecos da «concepção materialista da história, da luta de classes», mas também «a crónica pessoal», a «autobiografia poética» e, no fundo, «o canto geral da América». Saliente-se, ainda, o compromisso com um tempo histórico-político a uma escala não apenas chilena mas mundial (Neruda é, de algum modo, um poeta da itinerância). Esse compromisso manifesta-se na moldura política da sua poesia, como se lê em As Uvas e o Vento (2007), de 1954. Leia-se o seu belíssimo segmento XV, a evocar os tempos negros do fascismo português, sob o título «A lâmpada marinha»: «(…) Mas,/ó português da rua,/aqui entre nós,/que ninguém nos ouve,/tu sabes/onde/ está Álvaro Cunhal?/Reconheces a ausência/ do corajoso Militão? (…)/sabes onde caiu Bento Gonçalves,/o português mais puro,/a honra do teu mar e da tua areia?»

Deixemos, a terminar, três sugestões de leitura: a redescoberta desta poesia em Antologia de Pablo Neruda (Relógio d’Água, 1998), tradução de José Bento; e em Antologia Breve (Dom Quixote, 1999), tradução de Fernando Assis Pacheco; por último, o poema «Ao meu Partido», incluído em Canto Geral.

 

José António Gomes