Irmã Palestina: «Volto à minha casa sem saber se consigo perdoar»

Jorge Feliciano

É a Humanidade que ressoa neste espectáculo

Até dia 16 de Junho podemos assistir em Palmela, no Cine-Teatro São João, à segunda parte da tetralogia do Teatro O Bando dedicada às Mil e Uma Noites: Irmã Palestina.

Na sua forma singular de engendrar dramaturgias e encenações, o Teatro O Bando parte da recente e valiosa tradução de Hugo Maia feita directamente a partir do manuscrito árabe mais antigo até hoje conhecido. Uma tradução que procura restabelecer a oralidade de uma tradição onde as histórias eram contadas na rua, em cafés, mercados e outros locais públicos por contadores que, segundo o tradutor, alugavam o «livro» de As Mil e Uma Noites. Desta forma, o «livro» era utilizado como uma sebenta sempre em construção onde os contadores buscavam material para o seu repertório oral e, também, onde acrescentavam outras histórias pelo seu próprio punho, ou, se os contadores eram analfabetos, ditavam-nas a quem soubesse redigir. Um enorme trabalho colectivo e popular, portanto, foi o que tornou possível uma das grandes obras literárias da humanidade.

Contar para resistir

Na primeira parte da tetralogia, intitulada de Irmã Persa e estreada em 2023 com encenação de Suzana Branco, é colocado o foco no acto de contar histórias enquanto forma de resistência ao genocídio (no caso, feminicídio). O rei Xariar todas as noites casa-se com uma mulher, viola-a, e, na manhã seguinte, manda-a matar. Foi a solução sanguinária que o rei encontrou para evitar ser traído como sentiu ter sido pela sua primeira mulher, que também assassinou. A cada dia que passa as mulheres vão desaparecendo. Xerazade oferece-se, «para salvar o povo», a ser a próxima a casar com Xariar, expondo-se assim à sua violência. Em cumplicidade com a sua irmã Doniazade (a irmã Persa, interpretada pela actriz iraniana Tara Fatehi), organiza junto das mulheres a recolha de um conjunto de histórias que irão prender o rei. Mais do que a si, são as mulheres ainda vivas que Xerazade salva do genocídio, quando, a cada noite, consegue adiar a sua própria morte.

Irmã Palestina, trabalho colectivo e esperança

A peça agora em cena em Palmela e que apenas tem como garantida nova apresentação em Julho no Festival de Almada é um dos grandes acontecimentos dos últimos anos nas artes em Portugal. Irmã Palestina junta em co-criação o Teatro O Bando, a Companhia Olga Roriz e a Banda Sinfónica Portuguesa, três colectivos aqui dirigidos artisticamente por João Brites e Olga Roriz, e música original de Jorge Salgueiro. Desta feita, Doniazade, a irmã de Xerazade, é interpretada pela bailarina palestina Maria Dally. Num mundo assolado pela guerra e pela barbárie, em que os interesses de uns poucos limitam o diálogo e a cooperação entre os povos (e por isso a Paz), é profundamente emocionante assistir ao resultado do diálogo entre estes colectivos de criação artística e, em simultâneo, ao diálogo entre literatura, oralidade, teatro, dança e música. Um encontro em que os colectivos, partindo do seu mundo e do seu modo de fazer, vão descobrindo-se na construção de algo novo, transformando-se numa nova unidade colectiva maior e rara, resultado de uma também rara e franca cooperação, olhos nos olhos, de igual para igual. E por esta via é a Humanidade que ressoa neste espectáculo: o passado e o presente, a História.

E a barbárie – não podia deixar de ser – em curso na Palestina: «as gentes torturadas por hienas esfomeadas» e onde «em todos os locais que paramos colhemos uma criança assassinada».

Mas é a esperança quem mais ecoa. A tal «esperança que não espera», no dizer que Manuel Gusmão nos legou.

 



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