A Mulher em dois magníficos livros de Manuel Dias Duarte (1943/2024)

Domingos Lobo

Na obra de Manuel Dias Duarte, a mulher não é submissa, é personagem de corpo inteiro

A escrita de Manuel Dias Duarte, função que contou com mais de uma dezena de títulos de ficção, dos quais destaco Pedra da Lua, Don Giovanni em Lisboa e Angelina, uma mulher do povo na 1.ª República, assenta em três vertentes principais: o histórico, onde avulta a atmosfera política e social dos finais do século XIX; a 1.ª República e o período do Estado Novo; a pulsão operática, sobretudo na incursão que o autor reconstrói sobre libretos de Don Giovanni e do Werther de Edouarde Blau e Paul Milliet, mais do que uma viagem reconstrutiva e actual sobre o romance de Goethe O Sofrimento do Jovem Werther.

A terceira vertente que se inscreve no imaginário ficcional de Dias Duarte, e terá a melhor e mais afirmativa relevância na sua escrita, tem a ver com a forma como as personagens femininas atravessam estas ficções, como o autor as constrói, ou reconstrói, como elas tomam conta da ficção e nela crescem dominadoras e absolutas. A Mulher, na obra ficcional de Dias Duarte, não é submissa ou mero adereço de retórica: as mulheres conduzem e estabelecem a acção, os incidentes e o desenvolvimento da diegese. São personagens de corpo inteiro e, mesmo matreiras como Zerlina, o autor trata-as com sensibilidade e pudor. Nem o mais rigoroso romantismo tratou a Mulher com o deslumbramento rendido, mesmo quando crítico, como Dias Duarte o fez. Não será por acaso, ou mera especulação antropológica e intelectual, que ele é autor de uma obra, aqui e agora, singular: História de Portucália. Uma História de Portugal no Feminino.

Temos o plano histórico, a grande música e a mulher (e o amor, obviamente) como traves mestras desta ficção.

Permitam-me repetir aqui alguns extractos de recensões que fiz sobre duas obras de Manuel Dias Duarte, centradas na figura da Mulher, a começar por Angelina, duma notável crónica da 1.ª República que o autor inteligentemente reconstruiu, e Zerlina, de Don Giovanni em Lisboa.

«O processo revolucionário como foi o do início da 1.ª República (mesmo com os atropelos, as divisões, as querelas ideológicas no seio das principais forças que se opunham à monarquia) – período que podemos considerar até ao desvio do sidonismo, que tentou uma viragem conservadora no sentido de um restauracionismo de tipo monárquico, aproveitando a ressaca do final da 1.ª Guerra (um grave erro estratégico de Afonso Costa, determinante para debilitar os já então frágeis alicerces – ideológicos e económicos – da República), a fome quase generalizada, os mortos na Grande Guerra, a pneumónica e a tuberculose – contribuíram para o aparecimento da Mulher como participante e agente de transformação da sociedade. Ana de Castro Osório, no seu livro A Mulher e a Criança, dava já os primeiros sinais desse sentido cívico e emancipador que a mulher começava a exigir aos seus companheiros republicanos: «Nós trabalhamos mais pelo futuro da República lutando pelos nossos próprios direitos. […] Não há país que avance e progrida se a mulher for nele uma serva perante a lei, uma inferior pela falta de instrução, um valor nulo na sociedade e na família.»

Esta Angelina, de Manuel Dias Duarte, vem do povo, emerge dele, liberta-se dessa ganga de tolhimentos avoengos e apenas quer ser feliz, comer duas refeições por dia se possível e ter vida de gente; ser amante e amiga do seu homem, num país limpo. Nada de mais.

A Zerlina/Pedra da Lua, de Don Giovanni em Lisboa, é, na estrutura singular deste romance, a personagem que define todo o jogo romanesco. Pedra da Lua, curiosamente, ou não, dá título a uma anterior novela do autor, é igualmente título de um romance de Wilkie Collins, considerado o romance percursor do policial moderno.

Zerlina, a libertina, a coleccionadora de namorados, de ânsias, desesperos e paixões e o nosso Don Giovanni das margens do Danúbio, um sedutor da treta, nesta trama que se aproxima da farsa, a lembrar Luca Caragiale, da peça A Carta Perdida.

A escrita ficcional de Manuel Dias Duarte (há também o filósofo marxista e o pedagogo, com vasta obra publicada neste domínio), pela destreza imaginativa, pela transfiguração narrativa clara e dúctil, pelos horizontes pouco comuns em que a sua ficção se move, um autor que é preciso redescobrir, sendo estes dois títulos, Don Giovanni Em Lisboa e Angelina, Uma Mulher do Povo na 1.ª República dos seus mais estruturantes romances. Nestes dois títulos estão já as traves mestras dos romances posteriores do autor: Barco Encalhado na Areia, O Professor Simão Botelho, Um Outro Werther, A Amante Marroquina.

 



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