Nas catacumbas da actual conflitualidade mundial, para onde quer que se olhe no globo, está omnipresente um dos elementos centrais da hegemonia, em queda, dos EUA: o futuro do sacrossanto papel do dólar nas finanças mundiais e na ordem económica imperante. O espectro da desdolarização causa arrepio em Washington e, por arrasto, nas restantes capitais do G7.
Em tempos de desafios sistémicos e mudanças tectónicas no quadro internacional, a urgência da filiação e instinto de classe douram a pílula da vassalagem, sobrepondo-se à inescapável rivalidade e concorrência. O «suicídio» da Alemanha e a subserviência e fuga para a frente de Van der Leyen e da UE em torno da estratégia da guerra na Ucrânia contra a Rússia falam por si. A tendência de erosão do domínio do dólar, uma das facetas críticas que acompanha a emergência do chamado mundo multipolar, é motivo de apreensão existencial para Wall Street e o imperialismo.
Processo não linear, que sendo inseparável do desenvolvimento da crise estrutural do capitalismo, está invariavelmente ligado na cena internacional à ascensão, a todos os níveis, da China, da economia à defesa, da indústria à tecnologia. Apesar da proclamada estratégia de «desacoplagem» e «diminuição de riscos» de Washington e Bruxelas, a China permanece no centro das complexas cadeias produtivas e de abastecimento internacionais. Constitui um dos principais importadores mundiais de hidrocarbonetos e está na vanguarda do investimento e tecnologia em energias renováveis. É o músculo industrial, comercial e da «economia real» que sustenta a capacidade financeira de Pequim e as iniciativas complementares de Uma Faixa e Uma Rota, Banco Asiático de Investimento em Infra-estrutura e Fórum China-África, entre outras. O país asiático é o principal dinamizador de influentes processos multilaterais em expansão como a Organização de Cooperação de Xangai e o BRICS. Todos estes elementos cruzam-se com o processo de internacionalização do yuan, a par da diversificação do uso das moedas nacionais no comércio e investimento e na exploração de mecanismos alternativos ao sistema de pagamentos internacionais dominado pelos EUA.
O sistema dominante responde com a multiplicação das sanções e a aposta na coerção económica e militar. A imposição arbitrária de sanções (à Rússia, Irão, China etc.) tem-se revelado porém ineficaz e contraproducente. Após 2022, o número de países que batem à porta do BRICS subiu em flecha. Hoje mais de 90% do comércio bilateral entre a Rússia e a China utiliza as respectivas moedas. O yuan já é utilizado no pagamento de petróleo e gás, ameaçando o petrodólar. O Irão é membro da OCX e do BRICS e a Arábia Saudita aderiu a esta última. É crível que a desenfreada campanha concertada para empolar as adversidades da economia chinesa e manchar as perspectivas de crescimento, inserindo-se na crescente contenção da China, tenha em mente, precisamente, a tentativa de descredibilizar o yuan no comércio e finanças internacionais.
A procissão ainda vai no adro. A guerra surda em torno do dólar vai prosseguir, neste tempo sumamente turbulento e perigoso. Mas os maiores riscos à moeda dominante procedem do interior dos EUA. Da sua situação económica e desequilíbrios estruturais, da dívida à actual ameaça de uma das maiores bolhas da história do mercado bolsista…