Crónica de uma distracção
No julgamento de Trump, que começou esta semana, a sentença que realmente importa não tem nada a ver com os pagamentos feitos pelo ex-presidente dos EUA para comprar o silêncio de Stormy Daniels, uma prostituta de luxo. O verdadeiro réu é uma «democracia» que, alegadamente, terá deixado de bastar à sustentação de privilégios que nada têm de democráticos.
Em circunstâncias normais, o desvio de fundos da campanha republicana para pagar a Daniels seria punido com uma multa. Em circunstâncias normais, a incorrecção das contas relativas a esse dinheiro seria julgada como uma contra-ordenação, e não como um crime. A decisão do procurador distrital de Manhattan, Alvin Bragg, de elevar estas acusações a crimes federais, o que pressupõe um cúmulo jurídico de 20 anos de prisão, só podem ser entendidos como uma jogada do Partido Democrata para atar o candidato republicano ao banco dos réus de Nova Iorque durante semanas críticas para a campanha eleitoral.
Entre os quarenta e seis presidentes da história dos EUA, contam-se às dezenas os criminosos de guerra, os genocidas, os esclavagistas, os golpistas e os torturadores responsáveis por dezenas de milhões de mortos. O único alguma vez acusado de um crime é Donald Trump. E não é acusado de mandar prender crianças imigrantes em jaulas para cães, nem de ter fomentado um bizarro golpe proto-fascista: é antes acusado de ter pagado uns milhares de dólares a Stormy Daniels. O risco que o Partido Democrata corre não é apenas a eventual higienização de Trump, caso ele vença o processo, mas entregar-lhe o valiosíssimo trunfo da vitimização.
A disponibilidade do Partido Democrata para quebrar os principais consensos institucionais burgueses e ir a jogo num plano tão inclinado revela, por um lado, o desespero da campanha de Biden e, por outro, a compreensão de que a crise histórica do imperialismo estado-unidense já não se coaduna com tibiezas democráticas. Trump, naturalmente, se vencer, também não hesitará em servir-se dos mesmos meios judiciais para calar, travar e prender quem agora o procura calar, travar e prender. E enquanto nos tiverem distraídos a vê-los mandar-se calar, travar e prender uns aos outros, ninguém reparará como no fundo são parecidos.