A Revolução de Abril, que daqui a dias cumpre 50 anos, foi também uma extraordinária afirmação de paz: abriu caminho ao fim da guerra colonial, que ceifara e destruíra a vida a milhares de jovens portugueses e africanos, reconheceu a independência de novos Estados e afirmou a determinação do novo Portugal democrático de se abrir ao mundo, promovendo a paz, o desarmamento e a cooperação entre todos os povos.
A Constituição da República Portuguesa, que a 2 de Abril de 1976 fixou o essencial das conquistas revolucionárias, consagrou no seu artigo 7.º princípios particularmente avançados – para os padrões da época dominantes no denominado «Ocidente» e, mais ainda, para os actuais – sobre as bases em que deveriam assentar as relações internacionais do País.
Entre eles estão a defesa da independência nacional, da igualdade entre Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. E também da abolição de quaisquer formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos (nomeadamente o imperialismo e o colonialismo), do desarmamento geral, simultâneo e controlado e da dissolução dos blocos político-militares. A cooperação para a emancipação e o progresso da humanidade e a criação de uma nova ordem internacional, capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos, era – e é, pela letra e o espírito da Lei Fundamental do País – a proposta do Portugal de Abril para o mundo.
À consagração destes princípios não foi alheio o quadro internacional que então se vivia, marcado por impetuosos avanços das forças da paz, da libertação nacional e do socialismo. Em Agosto de 1975, meses antes dos deputados constitucionais terem aprovado o texto (alguns, como rapidamente se veria, a contragosto), foi assinada em Helsínquia a Acta Final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, que acolhia muitos daqueles princípios. O documento foi assinado por 35 países da Europa e da América do Norte, entre os quais a União Soviética e os EUA, embora estes últimos – e as palavras são do então secretário de Estado Henry Kissinger – considerassem todo o processo um «sensacionalismo de esquerda» a que teriam então de se submeter, e do qual se desembaraçaram assim que puderam.
Na cerimónia de assinatura da Acta esteve o Presidente da República Francisco da Costa Gomes, reafirmando a «integração real» do Portugal democrático no espírito da segurança e cooperação, depois da participação ambígua da ditadura fascista na primeira fase do processo, iniciado em 1973. A2 de Abril de 1976, o mesmo Francisco da Costa Gomes promulgaria a Constituição da República Portuguesa, momentos após a sua aprovação.
Uma luta que vinha de longe
Até à Revolução foram os democratas e os antifascistas a empenhar-se na preparação da Conferência de Helsínquia, unindo – como há muito vinham fazendo – a luta pela paz, o desarmamento e o desanuviamento à luta mais geral pela liberdade, a democracia, e, a dada altura, contra a guerra colonial.
Tal como sucedeu em muitos outros países, também em Portugal foi criado, após a Segunda Guerra Mundial e os horrores dos bombardeamentos nucleares dos EUA a Hiroxima e Nagasáqui, um movimento em defesa da paz, do desarmamento e da solidariedade, agregando personalidades de múltiplas áreas sociais, políticas e religiosas: a sua primeira grande iniciativa, o Apelo de Estocolmo, pela proibição das armas atómicas, recolheu a partir de Março de 1950 centenas de milhões de assinaturas em todo o mundo, e dezenas de milhares em Portugal.
Com a derrota dos seus aliados na guerra, a ditadura fascista portuguesa sustentou-se no apoio internacional do imperialismo norte-americano, que a colocou entre os membros fundadores da NATO, instrumento primordial da sua Guerra Fria dirigida contra a URSS e o campo de países socialistas, a libertação nacional e emancipação social dos povos de todo o mundo. Nesse contexto externo, exigir a proibição da arma atómica e a destruição dos arsenais nucleares, denunciar os crimes do imperialismo na Coreia ou no Vietname, prestar solidariedade aos povos em luta pela libertação do domínio colonial, recusar a lógica dos blocos militares e defender uma ordem internacional de paz e cooperação e protestar contra o desvio de avultados recursos financeiros do País para os compromissos internacionais com a NATO significava visar directamente o fascismo.
Daí os partidários da paz portugueses nunca terem tido a vida facilitada, enfrentando a repressão desde o primeiro dia. Muitos dos dirigentes e activistas deste movimento foram perseguidos, presos ou forçados ao exílio. Mas nem por isso a sua actividade abrandou. A amplitude, combatividade e longevidade do movimento da paz português – activo desde o início dos anos 50 até ao 25 de Abril de 1974 – explicam também a inclusão na Constituição da República Portuguesa dos princípios inscritos no seu artigo 7.º.
Paz e independência
O mais notável contributo para a paz dado pela Revolução de Abril foi, sem dúvida, o fim das guerras coloniais – que desde 1961 ceifavam vidas e recursos, em Portugal e em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique – e o reconhecimento da independência dos povos até então submetidos ao colonialismo português.
Dando continuidade a posições de princípio que assumiu anteriormente, o PCP defendia abertamente o direito dos povos das colónias à imediata independência desde o seu V Congresso, realizado em 1957, e em 1965 inscreveu no seu Programa, como um dos oito objectivos da Revolução Democrática e Nacional, precisamente o de «reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência».
Também o movimento da paz assumia desde há muito essa reivindicação, reafirmando-a logo nos primeiros dias após o derrube do fascismo. Logo em Maio, já o Conselho Português para a Paz e Cooperação (que formalizaria a sua existência legal cerca de dois anos mais tarde) saudava «todos os povos ainda sob a violência do colonialismo e do racismo, muito particularmente os povos irmãos das colónias, que o governo fascista português teimou em querer reduzir à escravidão, mas que a luta concertada dos patriotas dessas colónias e das forças amantes da paz em todo o mundo, sem esquecer as forças progressistas portuguesas, está prestes a conduzir à independência».
Como outras, também estas conquistas revolucionárias foram consagradas pela luta, impondo-se neste caso às manobras dos que, como o General Spínola, pretendiam reformular as bases do domínio colonial, para o continuar de outra forma – e não derrubá-las. O caso de Angola é paradigmático. Quando a sua independência foi proclamada, a 11 de Novembro de 1975, combatia-se nos arredores de Luanda: de um lado, os patriotas angolanos do MPLA e os internaciolistas cubanos; do outro, as forças da agressão e da ingerência que se escondiam por detrás da UNITA e da FNLA, onde pontificavam antigos agentes da PIDE, operacionais do ELP, mercenários de diversas proveniências, forças zairenses e sul-africanas.
O PCP esteve nesse dia representado em Luanda e foi o único partidos político português a fazê-lo. Outros, como o PS, opunham-se à proclamação da independência pelo MPLA e preferiam que a guerra prosseguisse, esperando outro desfecho. Só em Fevereiro de 1976 Portugal reconheceria oficialmente a República Popular de Angola. A ingerência e a agressão da África do Sul, assim como dos EUA, continuariam – tal como a solidariedade com a luta do povo angolano e do MPLA em defesa da soberania e independência de Angola.
Princípios e práticas
Durante a Revolução e no longo processo contra-revolucionário que se lhe seguiu, a realidade ficou marcada por uma constante tensão entre os princípios consagrados na Constituição e a prática política, os anseios populares e a acção governativa, a afirmação de soberania e a submissão ao imperialismo.
Se sucessivos governos envolveram o País no processo de reforço e alargamento da NATO, foram milhares os que denunciaram a natureza belicista e agressiva deste bloco-militar e exigiram a sua dissolução. Por cada guerra para que Portugal foi empurrado a envolver-se, pela mão de sucessivos governos PS e PSD, com ou sem CDS (na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Ucrânia), realizaram-se inúmeras acções em defesa da paz, pela não participação de forças portuguesas na agressão contra outros povos. Sempre que se cedeu aos novos saltos militaristas do imperialismo, muitas vozes se ouviram denunciando a retirada dos EUA de acordos de controlo armamentista, recusando a instalação de mísseis norte-americanos em Portugal, exigindo a proibição das armas nucleares e de destruição massiva. Quando as autoridades nacionais faltaram aos seus deveres de solidariedade houve quem tenha levantado bem alto a bandeira da solidariedade internacionalista e da paz: para travar a agressão e desestabilização contra Angola e Moçambique; pelo fim do apartheid; em apoio à luta do povo timorense à sua auto-determinação; pela criação do Estado da Palestina; pelo direito à auto-determinação do povo sarauí; pelo levantamento do bloqueio a Cuba; pelos direitos dos povos.
Resistindo a múltiplas tentativas de descredibilização e isolamento, o movimento da paz português cumpriu e cumpre o seu papel, honrando Abril e os seus valores.
Lutas de Abril
A complexidade da situação internacional e os perigos que dela decorrem acrescentam actualidade – e urgência – à luta pela paz. Os obstáculos serão (já são!) múltiplos e diversificados: das sistemáticas e imensas campanhas de manipulação mediática ao desvio para o militarismo e a guerra de importantes recursos financeiros. Mas Abril mostrou-nos como a luta por melhores condições de vida, pelo progresso e a justiça social, é inseparável da rejeição da corrida aos armamentos e dos crescentes investimentos na guerra que depois faltam no que é essencial.
Mas faz bem mais do que isso. Abril obriga-nos a defender a paz, a recusar a política de confrontação e de guerra do imperialismo que, do Leste da Europa a África ou do Médio Oriente à região Ásia-Pacífico, pode conduzir o mundo a uma catástrofe de proporções inimagináveis. Em vez de mais armas e mais bombas, exige-se a abertura de caminhos de negociação para a resolução pacífica dos conflitos internacionais, o desanuviamento, o desarmamento, a segurança colectiva, a cooperação.
Abril desafia-nos a que não calemos a nossa indignação com o massacre em curso na Faixa de Gaza e a ilegal ocupação de territórios palestinianos por parte de Israel, com a tragédia humanitária no Iémen em resultado da agressão do imperialismo, com o roubo de recursos energéticos da Síria pelos forças militares norte-americanas que ocupam ilegalmente território daquele país. Os povos têm o direito à paz, à soberania, ao desenvolvimento.
Abril exige a nossa solidariedade com a luta secular dos povos da América Latina pela verdadeira independência e dos povos de África contra as novas formas de colonialismo e dominação.
Abril implica que nos batamos por um mundo sem donos, de Estados soberanos e iguais em direitos, que cooperem em benefício mútuo e de toda a Humanidade, sem imposições ou ameaças, um mundo de paz e progresso social.