50 anos da Revolução de Abril

Derrubar mistificações, afirmar os valores, construir o futuro

A Revolução de Abril cumpre 50 anos daqui a pouco mais de um mês. Nestas quase cinco décadas, tem sido constante e intensa a luta entre os seus defensores e os que, inconformados com as suas conquistas e a persistência dos seus valores, pretendem elevar ainda mais o patamar da ofensiva contra os direitos, liberdades e garantias de Abril, contra o rumo de soberania, progresso e justiça social a que a Revolução apontou o País. Nesta operação do grande capital contra Abril são utilizados múltiplos e poderosos instrumentos – políticos, económicos, jurídicos e também ideológicos. As mistificações e mentiras são mais do que muitas: combatê-las e desmontá-las são parte importante do combate pela reafirmação dos seus valores no presente e no futuro do País.

É com Abril, e não contra ele, que se garante um País mais desenvolvido, mais justo e mais soberano


Fascismo ou mero «regime conservador»?

Uma primeira grande mistificação reside na natureza do regime derrubado em Abril de 1974. Hoje, os manuais escolares, a generalidade das teses académicas e o comentário televisivo mencionam a sua natureza «conservadora» e «autoritária», reconhecem-lhe até alguns «excessos», mas chegam a elogiar-lhe supostas «façanhas» financeiras e gabam a «austeridade» pessoal do ditador (que até ganhou o concurso para maior português da RTP).

Para recusar o cunho de fascista recorrem a comparações, a estilos pessoais e a números, fugindo daquilo que é essencial: o autoproclamado Estado Novo, inspirado e copiado no que era essencial do fascismo italiano, foi (como a definiu o PCP no seu VI Congresso) a «ditadura terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo) e dos latifundiários», que se dotou de todos os instrumentos para esmagar a Oposição, e desde logo o movimento operário: a polícia política, a repressão e a vigilância permanente; as prisões e o campo de concentração do Tarrafal; as torturas e os assassinatos; o partido único e a censura; a orgânica corporativa; as organizações de enquadramento, como os sindicatos nacionais, a Legião Portuguesa ou a Mocidade Portuguesa. A mudança de nomes de algumas destas instituições, já com Marcelo Caetano como Presidente do Conselho – a censura passou a exame prévio, a PIDE foi renomeada DGS e o partido único, a União Nacional, passou a chamar-se Acção Nacional Popular – não lhes alterou a natureza.

48 anos de fascismo deixaram uma marca pesada no País: milhares e milhares de presos políticos e vítimas de tortura ou assassinato; jovens enviados para a guerra em África, muitos dos quais não regressaram ou voltaram estropiados ou traumatizados; elevados índices de pobreza e analfabetismo; enormes carências ao nível da saúde, habitação e infra-estruturas básicas como rede eléctrica e de saneamento básico; dezenas de milhares de emigrantes e exilados, fugindo das perseguições, da guerra e da miséria; uma economia dependente, ao serviço de um punhado de famílias e de potentados financeiros estrangeiros.

 

Golpe, transição ou revolução?

Outra mistificação pretende apresentar o derrube do governo fascista pelos militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) como um acto isolado e o impetuoso movimento popular que, em simultâneo, se lhe seguiu (e que conferiu a todo o processo um carácter revolucionário) como um desvio a um qualquer «espírito inicial» do 25 de Abril. Ora, nem uma nem outra tese são minimamente aceitáveis.

Desde logo, porque a acção dos militares é antecedida por décadas de resistência e luta de amplos sectores sociais – pela liberdade e a democracia, contra a repressão e pela amnistia, por salários e direitos, pela paz. A própria criação do MFA dá-se num contexto de forte ofensiva popular contra o fascismo e a guerra colonial, à qual os militares (muitos dos quais oriundos das camadas populares) não ficaram indiferentes.

Da aliança entre os militares e o povo, estabelecida às primeiras horas da madrugada de 25 de Abril, resultaram – para lá do derrube do governo – a extinção da PIDE e a libertação de todos os presos políticos, que o general Spínola não desejava, mas que não conseguiu impedir. Todas as extraordinárias conquistas revolucionárias subsequentes deveram-se à irreprimível dinâmica popular, com o apoio dos militares progressistas.

Sendo uma revolução, Abril teve originalidades e desenvolvimentos que nenhuma análise ou proclamação pôde prever. No entanto, não só confirmou em aspectos centrais os objectivos apontados pelo PCP no seu programa para a Revolução Democrática e Nacional (aprovado em 1965) como desenvolveu propósitos consagrados no Programa do Movimento das Forças Armadas, que – ao contrário do que é muitas vezes sugerido – não se limitava a defender o fim da guerra colonial e a reposição das liberdades políticas. Propunha também uma «nova política económica, posta ao serviço do povo português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas», uma política social visando o «aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses». Foi a aliança Povo-MFA o motor da revolução que determinou as importantes conquistas: o salário mínimo nacional, a contratação colectiva, o direito de greve, as nacionalizações, a Reforma Agrária, o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, o sistema de Segurança Social universal e solidário inserem-se claramente nestes objectivos.

O papel determinante das massas populares, a profundidade das transformações alcançadas e a sua correspondência com os anseios, as aspirações – e a luta – de amplas camadas do povo português atestam o carácter revolucionário de Abril, que tal como não foi um golpe foi muito mais do que uma mera «transição democrática», como por vezes se diz.

 

Violência? De quem?

No recente debate televisivo (se assim o pudermos chamar) entre o Secretário-Geral do PCP, Paulo Raimundo, e o líder do Chega, este retomou uma velha tese fascista, a que acusa os comunistas de terem cometido crimes durante o processo revolucionário – para, no fim, concluírem que a própria Revolução foi um crime.

Mais uma vez, a propaganda nada tem de correspondência com a realidade: à semelhança do que acontecera durante os 48 anos de fascismo, em que os comunistas foram as principais vítimas da repressão (foram militantes do PCP a maioria dos presos, dos torturados, dos assassinados), também durante o processo revolucionário o PCP foi o alvo primordial dos ataques terroristas dos grupos de extrema-direita, como o MDLP, do qual foi operacional o vice-presidente do Chega, Diogo Pacheco de Amorim.

Entre meados de 1975 e Abril de 1977, conta o jornalista Miguel Carvalho (Quando Portugal Ardeu, 2017), tiveram lugar quase 600 atentados e acções violentas da extrema-direita, contra sedes partidárias – sobretudo do PCP –, automóveis, casas e escritórios de militantes comunistas, democratas e progressistas. Entre as vítimas mortais contam-se alguns militantes comunistas.

O general António de Spínola estava por trás destes atentados, sendo difíceis de ocultar as ligações ao PSD e também ao PS.

Durante a Reforma Agrária, usada tantas vezes como exemplo da referida «violência», foram mortos pelas forças policiais ao serviço dos agrários trabalhadores (comunistas, alguns) que defendiam o direito a trabalhar a terra. Nas ocupações – sobretudo de latifúndios absentistas – não morreu nenhum agrário.

 

Memória ou futuro?

A Revolução de Abril alterou completamente a face do País, que num período de alguns meses passou de um Estado fascista e colonialista, crescentemente isolado do mundo, a um País livre e democrático, apontado ao socialismo – inscrito ainda hoje como objectivo no Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976.

Entre as grandes conquistas democráticas da Revolução de Abril contam-se direitos fundamentais, como a constituição de partidos políticos, o direito ao voto universal e aos 18 anos, o fim da censura, a liberdade de organização sindical, os direitos de manifestação e de greve, a adopção de um largo conjunto de medidas sociais, como o aumento de salários, das reformas e pensões, o alargamento do direito a 30 dias de férias pagas, a instauração de um salário mínimo nacional; os direitos das mulheres e da juventude, a igualdade e o combate às discriminações; a reforma agrária, as nacionalizações e o controlo operário; o acesso generalizado ao ensino, à saúde e à segurança social; o desenvolvimento e a democratização da cultura; o fim da guerra colonial, reconhecendo o direito à independência dos povos das colónias; o poder local democrático; uma política externa de paz e cooperação e a salvaguarda da independência e soberania nacionais. O desenvolvimento do processo revolucionário assegurou o regime democrático, o fim do poder dos grupos monopolistas, a democratização da sociedade portuguesa, o desenvolvimento do País e a melhoria das condições de vida do povo.

Atacada desde o primeiro dia, através de golpes e sabotagens, a Revolução de Abril ficou inacabada. O processo contra-revolucionário, iniciado em 1976, com o I Governo constitucional, liderado por Mário Soares, conseguiu reverter muitas das conquistas e reduzir o alcance de muitas outras. Mas não conseguiu tudo.

Muito do que em Abril se conquistou permanece hoje bem vivo, consagrado na Constituição da República Portuguesa. Defendê-lo, ampliá-lo, recuperá-lo, dar-lhe cumprimento efectivo é fundamental para que Abril viva no presente e no futuro de Portugal. É com Abril, e não contra ele, que se garante um País mais desenvolvido, mais justo e mais soberano.