- Nº 2622 (2024/02/29)

Mil-Homens, de Alexandre Hoffman Castela

Argumentos

A literatura portuguesa é pródiga em sagas familiares, sendo alguns títulos publicados neste género, desde o romantismo até aos nossos dias, textos incontornáveis, momentos impressivos da história da nossa literatura, como O Judeu, de Camilo Castelo Branco, Os Maias, de Eça de Queirós, Os Reinegros e Barranco de Cegos, de Alves Redol. Na literatura contemporânea encontramos também alguns estimáveis títulos, como Levantado do Chão, de José Saramago, Deus, Pátria, Família, de Hugo Gonçalves, Maré Alta, de Pedro Vieira, As Raízes de Inge, do próprio Hoffmann e Velhos Lobos, de Carlos Campaniço.

No que aos percursos geracionais diz respeito, lembro o romance primeiro de José Casanova, O Caminho das Aves, cujo percurso diegético se inicia nos anos 1940, na aldeia ribatejana do Couço e termina nos dias levantados de Abril e nos fala, como este Mil-Homens, romance maior de Alexandre Hoffmann, que no capítulo III – Terra Que É Nossa, se assemelha, através da luta de Isabela Mil-Homens e do tio Vasco Mil-Homens, à jovem geração resistente que nos cafés de Lisboa, nas obras, nas oficinas, nos escritórios e nas faculdades lutaram para que Abril fosse o dia inaugural, inteiro e limpo.

Na prosa fecundíssima do autor de O Quadro Vermelho de Jericó, a saga dos Mil-Homens acompanha a história do País desde a queda da monarquia ao 25 de Abril de 1974, os seus momentos trágicos e jubilosos, a fome, as perseguições, as guerras (a 1.ª e 2.ª guerras ditas mundiais), a implantação da República e o golpe de 28 de Maio, a guerra colonial e as prisões da PIDE. O realismo de Hofmann Castela assenta no factual histórico, envolvido em prosa fecunda e formalmente envolvente que atravessa toda a narrativa.

Se os longos períodos do discurso de Mil-Homens, se os constantes apelos com que o narrador omnisciente desafia o leitor (e nessa percussão é lídimo intuirmos que o autor leu Barthes e Saussure, este último no que aos aspectos diacrónicos da linguagem diz respeito), permitem a envolvência crítica, conjugada com a adesão emotiva que a língua de Hofmann cuida, a espaços, de anular, distanciando-se, com perícia de oficina, os aspectos mais dramáticos que percorrem a sua dimensão ficcional. Este livro é, desde já, um texto inesperado, a abalançar-se no prodígio raro da sua pulsão narrativa, no estilo sereno, no seu envolvente barroquismo, no contido realismo poético que o estrutura, na linguagem cuidada e erudita, que não encontra referentes na nossa prosa hodierna, quando vai à raiz das falas avoengas, aos mais extensos alforges desta língua nossa, que o autor recupera e transfigura, trazendo-as para a modernidade. Palavras como possança, avernal, dubiedade, entono, trissulcada, enceguecido, discipulatas e tantos outros belos vocábulos que a nossa actual literatura perdeu de usança, tornando-nos mais pobres leitores e falantes atrelados a rudimentos.

Romance sobre a História, a nossa história dos últimos cem anos, também sobre a particular saga de várias gerações (mil-homens somos nós, os insubmissos), que viveram por dentro dias amargos e infames, dolorosamente acossados por regimes burgueses e despóticos, tratando a fome por tu, levantando a cabeça do chão a que os queriam amarrados.

Mil-Homens é um romance histórico porque é político, denuncia e reflecte o clima político de várias épocas e suas consequências no tecido social. Assim, a política é neste romance componente natural da vida, sobretudo da vida das personagens deste épico, primorosamente erguidas por Alexandre Hoffmann Castela em Mil-Homens.

Um romance engajado, no melhor sentido sartriano do termo, que se não limita a traçar o percurso da família Mil-Homens ao longo de décadas, diz-nos do país cercado, da mistificação boçal da nossa História, do subdesenvolvimento arvorado em dogma de virtudes divinatórias, o céu por recompensa, da vidinha sossegada em mausoléus vigiados, olhos cegos e boca para dizer as trivialidades consentidas, a paz dos cemitérios, pão que bastasse para os enganos da fome e uma G3 com fardamento a condizer para irmos matar pretos malandros nos caminhos de perdição das matas africanas.

Mil-Homens diz-nos as dores e o júbilo do povo miúdo, descreve a crónica da república velha sem emenda, do povo levantado, os rumores de cerco do país das sombras, premonitório de fechamento. É a história a repetir-se em intermináveis círculos a que o autor, metaforicamente, nos propõe começando pela queda da monarquia e os sonhos da República de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e o seu fim em moderato cantabille.

Um romance feito das nossas colectivas memórias. Da memória transferida, transformada e transbordante que habita as páginas deste magnífico e oportuno romance.

Domingos Lobo