Entrevista a Arun Kumar, do Partido Comunista da Índia (Marxista)

Mobilizar a luta dos trabalhadores, dos agricultores e do povo indiano

Na sua recente visita a Portugal, Arun Kumar, membro do Comité Central e do Secretariado Central do Departamento Internacional do Partido Comunista da Índia (Marxista), falou ao Avante! sobre a situação do seu país, marcada pelas desigualdades, a inflação galopante e a crescente violência política, e sobre as perspectivas da sua evolução.

A política do denominado Partido do Povo Indiano (BJP) levou ao aumento da violência política na Índia contra os comunistas, as minorias religiosas, as mulheres

Avante!: Como caracteriza o Partido Comunista da Índia (Marxista) a actual situação que se vive na Índia?
Arun Kumar
: Tivemos reunião do Comité Central no final de Outubro, na qual concluímos que hoje se comprova a análise que fizemos no último Congresso do PCI(M): o governo do denominado Partido do Povo Indiano (BJP) caminha para o autoritarismo. Há uma ofensiva contra os direitos democráticos. As pessoas não podem expressar livremente as suas discordâncias. E há um forte ataque contra os direitos dos trabalhadores, dos camponeses, dos estudantes, dos jornalistas, das minorias étnicas e religiosas. As próprias instituições democráticas estão a ser visadas.

O PCI(M) tem em curso uma campanha contra o desemprego e as desigualdades. Que dimensão têm hoje estes fenómenos?
Neste momento, na Índia, os rendimentos dos 1% mais ricos aumentaram 30%, enquanto os rendimentos dos 30% mais pobres cairam 25%. Sobre o desemprego, estima-se que a taxa se situe nos 8,1%, mas ela é substancialmente superior entre os jovens, subindo para 23,2%. Se falarmos do desemprego entre os jovens licenciados ele é ainda mais significativo, ronda os 42%.

Vive-se também um momento marcado pela violência política...
Quando falamos de violência política referimo-nos a vários aspectos, um dos quais é a violência contra o nosso Partido. Na última semana de Outubro, um camarada foi assassinado no Estado de Bihar. Esse camarada lutava pelo direito dos camponeses à terra e os proprietários mataram-no. Também em Tripura, onde o Partido esteve no poder até 2018, continuam a ocorrer ataques, assim como em Bengala Ocidental. Juntamente com ameaças de morte, por vezes consumadas, há também a violência sexual contra as mulheres e a que visa o ganha-pão dos nossos camaradas: se um for taxista, queimam-lhe o carro, se tiver pequenas mercearias tentam impedi-lo de vender...

E os outros aspectos?
Há os ataques às minorias, que se devem ao ódio disseminado pelo governo do BJP.
Houve muçulmanos mortos num posto militar por transportarem carne de vaca, quando afinal apenas levavam borrego e cabra. Um professor de Utar Pradesh obrigou os rapazes hindus a esbofetearem um colega muçulmano. Um polícia matou seis muçulmanos num comboio e ainda um superior hierárquico que o tentava impedir. Quanto aos cristãos, nos primeiros oito meses de 2023 foram registados 525 ataques, muitos dos quais mortais. Quando o BJP chegou ao governo, em 2014, houve 151 ataques contra minorias cristãs...
Cresce também a violência contra a casta dos dalits (intocáveis) e contra as mulheres, que são violadas e mortas sem que a polícia faça nada. Aliás, muitas das testemunhas destes crimes são também atacadas e, até, mortas.
E depois temos os ataques aos jornalistas…

Que tipo de ataques?
Dou um exemplo. Dois camaradas, que dirigem um portal de informação chamado Newsclick, foram presos ao abrigo da Lei de Prevenção de Actividades Ilícitas, que tem uns seis ou sete anos e está a ser usada contra jornalistas e agências de informação. Revistaram as casas e vasculharam os telemóveis e os computadores portáveis de 50 jornalistas que lá trabalhavam. Quando os interrogaram perguntaram-lhes: «porque deu expressão a esta luta?» «Qual a sua relação com o PCI (M)?»

 

Há muitas lutas em desenvolvimento

Em 2020 e 2021 houve grandes lutas dos agricultores, que forçaram o governo a recuar...

Essas lutas prolongaram-se por mais de um ano e terminaram após o governo ter anunciado a retirada das leis que as motivaram. Eram fundamentalmente três: a primeira abria a porta à entrada de empresas privadas na agricultura, o que até hoje está legalmente vedado; a segunda acabava com as comissões estatais de comercialização da produção agrícola, sem as quais os agricultores teriam de vender os seus produtos nos mercados, arriscando-se a nem sequer recuperarem os custos de produção; a terceira acabava com o «preço mínimo», que todos os anos o governo fixa para a maioria das culturas.

Essas leis foram abandonadas?
O governo parou por causa dos protestos, mas não desistiu. Não há nenhuma lei que permita às grandes empresas entrarem no sector agrícola, mas o governo está a procurar garantir que elas entram na mesma, pela «porta de trás». O mesmo com o preço mínimo. Foi prometido que seria reposto, mas ainda não foi promulgada nenhuma lei nesse sentido. Essa é a razão pela qual os agricultores estão hoje, uma vez mais, a percorrer o país para explicar ao povo o logro que o actual governo representa.

Que outras lutas estão em desenvolvimento?
São muitas. Desde logo contra o desemprego. A juventude está mobilizada em todo o país, explicando às pessoas as razões do desemprego e procurando envolvê-las nesta luta. Depois, o aumento dos preços, a inflação, que é um grande problem. Na primeira semana de Novembro houve protestos.

E já falámos dos agricultores, que se organizam. Num protesto de 48 horas, de 26 a 28 de Novembro, nas sedes dos distritos, confrontaram o governo com as suas promessas não cumpridas. Milhares de pessoas sentadas em frente a edifícios públicos durante dias, dormindo, cozinhando e comendo no local…

 

Três condições para avançar

Que perspectivas aponta o PCI(M) para a sua intervenção nos próximos tempos?
A nossa primeira prioridade é garantir a derrota do BJP nas eleições do próximo ano. Queremos que os camponeses e os trabalhadores se envolvam na campanha contra as políticas governamentais, que estão a provocar muita revolta. E estamos a construir um bloco eleitoral, chamado INDIA, que reúne 28 partidos, nacionais e regionais. O objectivo é conseguir que, a nível distrital, estes partidos não concorram entre si, de modo a não dividirem os votos anti-BJP.

E como se consegue isso?
Na Índia, a força mais votada em cada círculo ganha e a ideia é que o partido mais forte em cada um deles possa concorrer sozinho contra o BJP. Analisaremos a realidade círculo a círculo e em cada um deles veremos qual o partido que poderá derrotar o BJP. Será esse a assumir a liderança e todos os outros deverão apoiá-lo. Nos distritos em que o BJP não concorra ou seja fraco, a questão não se coloca. Há, em todo o país, 543 círculos eleitorais.

Essa é a primeira prioridade… Quais as outras?
Não basta apenas derrotar o BJP nas eleições, porque mesmo que seja derrotado continuará activo e será capaz de influenciar as pessoas ideológica e socialmente. É preciso derrotá-lo também política, económica, social, ideológica e culturalmente. É uma luta multifacetada e as eleições são apenas uma parte dela.

De que consta essa luta mais vasta?
Temos de reforçar o PCI(M) e é em torno dele que é preciso congregar todas as outras forças seculares, progressistas, patrióticas, para derrotar o projecto do BJP. Se não houver esse reforço, essas forças não terão a confiança necessária para se reunirem em torno do PCI(M). Sabemos que não contamos com os partidos burgueses para esta luta mais vasta.

Estamos empenhados na construção de uma frente democrática de esquerda. Não se trata de uma frente de partidos, mas de uma frente baseada nas lutas de classe e de massas, como as que os trabalhadores e os agricultores têm vindo a travar, cada vez mais unidos. Em torno deles poderemos mobilizar outros sectores.

Para alterar a situação actual temos, portanto, de cumprir três tarefas fundamentais: isolar e derrotar o BJP; fortalecer o PCI(M); construir a frente democrática de esquerda.

 

A Índia é hoje um «parceiro júnior» dos EUA

Como observa o PCI(M) a actual situação internacional?
Observamos uma viragem à direita, com a imposição do neoliberalismo. Perante o fracasso dos partidos social-democratas e dos partidos conservadores em fornecer qualquer alternativa ao projecto neoliberal, as pessoas estão revoltadas e há forças de extrema-direita a chegar ao poder. Vimos isso no Brasil, nos EUA, em Itália e na Índia, com Modi. Esta viragem só poderá ser travada com a superação dos efeitos da crise e o reforço dos partidos comunistas.

E relativamente à política externa indiana, como a caracteriza?
O Índia era um aliado tradicional da União Soviética e após 1991 começou a mover-se em direcção aos EUA. Este movimento, que foi lento na última década do século XX e na primeira do século XXI, acelerou após 2008, quando a Índia assinou um acordo nuclear civil com os EUA, que não é apenas um acordo nuclear, abrange diversos aspectos. Hoje, a Índia tem muitos acordos de Defesa com os EUA e tornou-se um «parceiro júnior» dos EUA.

Depois de, durante anos, ter liderado o Movimento dos Não-Alinhados...
Modi é o único primeiro-ministro da Índia que nunca participou numa cimeira do Movimento dos Não-Alinhados, e já está há nove anos no cargo. Mas este é também o primeiro-ministro que expressou o seu apoio a Israel após 7 de Outubro, quebrando a tradição da política externa indiana, favorável à Palestina. O embaixador da Índia em Israel garantiu haver um exército de voluntários que está pronto a ajudar as forças sionistas na Palestina (a mílicia armada do BJP, o RSS).

A Índia é, hoje, o maior comprador de armas israelitas e integra o chamado «I2U2», um acordo militar com Israel, EUA e Emiratos Árabes Unidos. É uma espécie de «QUAD ocidental»...

E pertence também ao próprio QUAD...
Temos várias alianças militares nesta região. O QUAD, entre os EUA, a Índia, o Japão e a Austrália, e o AUKUS, centrado na região Ásia-Pacífico, reunindo EUA, Reino Unido e Austrália. Não há muito tempo foi anunciado que os portos navais indianos estarão abertos para a frota naval dos EUA, incluindo a frota militar. Os dois países têm até um comando naval conjunto.

Como se coaduna essa transformação da Índia em «parceiro júnior» dos EUA com a integração do país nos BRICS?
As classes dominantes sempre balançaram, olhando em primeiro lugar para os seus interesses. Já era assim no tempo da União Soviética, quando na década de 1950 a Índia apoiou a intervenção dos EUA na Coreia. Usam agora o BRICS com esse mesmo objectivo. Para nós, o BRICS não é um grupo anti-imperialista, é uma organização multilateral que de certo modo constitui uma alternativa à hegemonia dos EUA.