Idas ao cinema

Marta Pinho Alves

Os objectos audiovisuais são hoje apresentados e vistos em múltiplos ecrãs

Se a descrição de uma ida ao cinema é ainda reconhecível – porque evoca memórias vividas ou porque, em alguns casos, esta possibilidade permanece contígua a outras formas de apresentação cinematográfica –, representa agora, como assinala Jonathan Rosenbaum, uma versão canónica ou idealizada da experiência do cinema, que não alude a todas as suas alternativas e concretizações.

Um grupo significativo de indivíduos já não se identifica com esta prática e, por razões que podem ser diversas, não a procura ou considera preferencial, face ao leque de alternativas que lhe são apresentadas. Fora da sala de cinema (mas também aí), a atitude passiva convencional da sala de cinema é já́ incomum. O espectador torna-se um espectador-utilizador, um viewser. Isso é permitido pelas interfaces que mobiliza para ver o filme, que lhe possibilitam alterar a velocidade, acrescentar comentários áudio, saltar capítulos; pela mobilidade do ecrã e o seu movimento através de vários cenários e contextos físicos; pelo visionamento fragmentado e interrompido, em oposição ao visionamento contínuo; pelo seu cruzamento com outros conteúdos.

Lawrence da Árabia (Lawrence of Arabia, real.: David Lean, 1962), filme com 216 minutos de duração e caracterizado pelos seus planos longos e gerais, é habitualmente referido para aludir ao tipo de filmes impossível de ser visto, adequadamente, nos ecrãs contemporâneos, pequenos e móveis. Os filmes nativos deste contexto usam frequentemente planos curtos e aproximados e têm uma duração reduzida.

Francesco Casetti, teórico do cinema, tem dedicado o seu trabalho recente a analisar o processo de reorganização da experiência cinematográfica face às transformações suscitadas pelo digital. Este considera que, ao mesmo tempo que emergem novas práticas de recepção, que não contemplam nem a película, nem a sala de cinema, a experiência do filme em sala é actualizada com contributos daquelas novas práticas. O autor designa a primeira destas transformações – o movimento desde a sala de cinema para outros contextos e ecrãs – por «relocalização» e a segunda – de volta à sala de cinema, mas reconfigurada pelas novas possibilidades – por «rerrelocalização».

Casetti admite que estas modalidades de recepção possam ser ainda mais complexas. A «relocalização», afirma, pode ser «inovadora» (destinada a novos ambientes e equipamentos) ou «conservadora» (em ambientes ou equipamentos que recriam a experiência tradicional). Para o segundo caso, destaca o exemplo dos vários equipamentos domésticos que mediante a combinação de televisores e sistemas de som se propõem reproduzir a experiência do cinema em casa (estes assumem até a designação home cinema). Adicionalmente, pode existir uma terceira modalidade de receção, a «não-relocalização». Esta ocorre quando a sala de cinema não permite qualquer inovação, mantendo o regime de visionamento tradicional.

Os objectos audiovisuais são hoje apresentados e vistos em múltiplos ecrãs. Atom Egoyan alude ao facto sugerindo a sua utilização complementar no filme Double Bill Artaud, segmento do filme Cada Um o Seu Cinema (Chacun Son Cinema ou Ce Petit Coup au Coeur Quand la Lumière s’Eteint et que le Film Commence, real.: AAVV, 2007). No filme mencionado, que conta uma ida ao cinema, o ecrã do telemóvel é usado em simultâneo com o da sala de exibição, modalidade de experiência de recepção que Francesco Casetti designa por «rerrelocalização».




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