«De novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre»*
A 11 de Setembro de 1973 um golpe militar fascista comandado a partir de Washington afogou em sangue a experiência da Unidade Popular chilena, que ao longo de três anos operou profundas transformações democráticas no país sul-americano, que se libertava das amarras do imperialismo. A luta, essa, nunca cessou e prossegue hoje contra o legado de repressão, injustiças e desigualdades da ditadura de Pinochet e dos Chicago Boys.
* excerto do último discurso do presidente Salvador Allende, quando se encontrava sob fogo de artilharia no Palácio de La Moneda, difundido pela rádio
É extensa a lista de golpes de Estado orquestrados pelo imperialismo norte-americano desde a Segunda Guerra Mundial: do Irão ao Congo, da Indonésia à Guatemala, da Grécia ao Brasil, passando pelo Chile, foram esmagadas sob botas cardadas quaisquer veleidades de empreender rumos soberanos e progressistas. Em consequência destes e de outros golpes, em tudo semelhantes, milhões de pessoas foram assassinadas, presas, torturadas e forçadas ao exílio e os respectivos povos reconduzidos, por vezes durante longos períodos, à opressão, à miséria, ao obscurantismo, ao domínio do imperialismo.
O golpe que há 50 anos, naquela cinzenta madrugada de Setembro, pôs um fim violento à via chilena para o socialismo – e às vidas de Salvador Allende e de tantos dos seus companheiros –, não foi o primeiro nem o último do género, mas foi paradigmático da natureza e da forma de actuar do imperialismo: a anteceder (e a preparar) a acção militar estiveram três anos de sabotagem económica, desestabilização política, guerra mediática, conspiração, subornos e crimes, visando impedir que a experiência progressista chilena prevalecesse e o seu exemplo se espalhasse. Era a concretização da fórmula para o caos, exigida por Washington à delegação da CIA em Santiago.
A participação determinante dos EUA na preparação e realização do golpe fascista no Chile nunca foi propriamente um segredo, por mais que o tenham negado membros e porta-vozes de sucessivas administrações e comunicados oficiais. As evidências são mais do que muitas e documentos desclassificados nas últimas décadas comprovam não só a hostilidade dos EUA face a Allende e à Unidade Popular como sobretudo os meios avultados colocados ao serviço da desestabilização e derrube do governo popular.
Mas há muito ainda por saber: há dias, um veterano diplomata chileno solicitou formalmente à administração norte-americana a publicação da documentação relativa ao que se discutia na Casa Branca em 1973 e 1974, antes e logo após o golpe.
Violência e neoliberalismo
Fuzilamentos sumários, brutais torturas, entre as quais espancamentos, chicotadas, golpes no rosto e nos órgãos genitais, violações e violência sexual, tortura psicológica: foi pela mais absoluta violência que a ditadura encabeçada por Augusto Pinochet consolidou e manteve o seu poder. O relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Torturai, publicado em 2011, testemunha o horror destes crimes. Não será certamente um pormenor o facto do chefe da DINA (a criminosa polícia política fascista), Manuel Contreras, ser agente da CIA, como a própria agência comprovou, em 2000, ao Congresso dos EUA.
A eliminação física dos opositores políticos e o desmantelamento das organizações políticas e sociais da Unidade Popular foram objectivos centrais da repressão fascista, que ceifou milhares de vidas, deixando pais sem filhos e filhos sem pais, visando lideranças de partidos políticos, organizações sindicais e movimentos camponeses, privando o Chile e o mundo de duas vozes inigualáveis: o cantautor Victor Jara, uma das muitas vítimas do massacre do Estádio Nacional, e o poeta Pablo Neruda, logo após o golpe.
A ditadura terrorista, que destruiu uma por uma as extraordinárias conquistas alcançadas pela Unidade Popular (embora as não tenha apagado da memória colectiva dos chilenos), fez do Chile campo fértil para o neoliberalismo, adoptado pela administração Reagan, nos EUA, pelo governo Thatcher, no Reino Unido, e depois imposto por todo o mundo. A total ausência de direitos democráticos e a brutal repressão sobre o movimento operário e popular aplanaram o terreno para as privatizações, a desregulação das relações de trabalho e a concentração acentuada da riqueza, com o consequente agravamento das desigualdades sociais.
A Unidade Popular
Em apenas três anos, o governo da Unidade Popular transformou profundamente a economia e a sociedade chilenas. Enfrentando desde o primeiro dia a hostilidade e a sabotagem de poderosos sectores políticos e económicos internos, e a ingerência do imperialismo, recuperou o controlo da totalidade das riquezas nacionais (a começar pela principal, o cobre), nacionalizou 70 das maiores empresas monopolistas, expropriou seis milhões de hectares de terras cultiváveis, assumiu a direcção de 16 dos 18 bancos comerciais, nacionais e estrangeiros.
E fez mais: redistribuiu a riqueza nacional, diminuindo drasticamente as desigualdades; promoveu o aumento da produção industrial e reduziu o desemprego, a pobreza e a mortalidade infantil; construiu milhares de habitações para as camadas laboriosas e generalizou os direitos à educação e à saúde. Nas primeiras horas do seu mandato presidencial, Salvador Allende reatou os laços diplomáticos com Cuba socialista, primeiro e significativo passo para uma política externa independente. Como escreveria mais tarde Luis Corvalán, à data Secretário-geral do Partido Comunista do Chile (PCC), «as relações do Chile deixaram de se reger pelas imposições do Departamento de Estado» norte-americano.
As transformações operadas durante os anos da Unidade Popular, que assumiram um carácter profundamente progressista, não foram obra de um homem só, por mais que tenha sido importante o papel do companheiro presidente (como chamavam a Allende os seus apoiantes). No hino da sua campanha presidencial garantia-se com acerto que «desta vez no se trata de cambiar un presidente, será el pueblo quien construya un Chile bien diferente». A participação popular foi constante durante todo esse período, na conquista e consolidação das transformações: as Juntas de Abastecimento e Controlo de Preços (JAP), as comissões de base, os sindicatos, os conselhos camponeses e comunais constituíram-se então como embrião de um novo tipo de Estado, democrático e popular.
Na vanguarda deste processo encontrava-se a Unidade Popular, frente ampla que se vinha construindo e ampliando desde a década de 1950, reunindo comunistas, socialistas, sociais-democratas, cristãos progressistas e outros sectores de esquerda. Todos estes partidos, sublinharia Corvalán, contribuíram para a vitória eleitoral de 1970 e para as extraordinárias transformações progressistas e mantiveram-se «unidos e leais até ao fim».
A luta e a herança
Apesar da brutalidade da repressão, a luta contra o fascismo desenvolveu-se desde cedo no Chile, com os comunistas a assumirem um destacado lugar. Depois de, em 1977, o Comité Central do PCC ter apelado ao desenvolvimento de «todas as formas de luta contra a ditadura», a década seguinte ficou marcada pelos efeitos da estratégia da Rebelião Popular de Massas: a resistência generalizava-se, abrangendo diversos sectores sociais e ganhando uma crescente expressão pública; a nível internacional agravava-se o isolamento do fascismo chileno à medida que se alargava a solidariedade ao seu martirizado mas combativo povo.
Com cada vez menos margem de manobra interna e externa, a ditadura viu-se forçada a aceitar o plebiscito de Outubro de 1988 sobre a continuidade do regime militar: apesar das ameaças e das tentativas de controlar a eleição, o «Não» acabou por vencer. Mas o fim da ditadura não significou o fim do pinochetismo: o neoliberalismo continuou, assim como a impunidade dos militares e de quem os sustentou. A actual Constituição chilena é em grande medida a que foi herdada da ditadura.
Em 2019, a repressão de um protesto estudantil contra o aumento do preço dos bilhetes do metro de Santiago fez estalar a indignação há muito contida. Milhões de pessoas em todo o Chile saíram às ruas exigindo direitos, justiça social, igualdade, dignidade – e uma nova Constituição. Os comunistas, integrados numa frente eleitoral e social ampla, participam hoje no governo do país, num processo não isento de dificuldades e contradições.
Razão tinha Allende quando, no seu último discurso ao país, no palácio presidencial sob fogo de artilharia e bombardeamentos aéreos, previu que «de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor».
via chilena para o socialismo
A revolução chilena suscitou, à época, um vivo debate político e ideológico sobre as vias de transição para o socialismo. Caracterizada pelo Partido Comunista do Chile como uma revolução anti-imperialista e anti-oligárquica visando atingir objectivos socialistas, ela demonstrou na prática (realçava o então Secretário-geral Luís Corvalán) a possibilidade de a classe operária e o povo «chegarem ao poder – ou melhor, a uma parte do poder – por uma via não armada e de tornar realidade uma série de transformações revolucionárias por essa via».
Para o PCC, a experiência chilena confirmou que a «classe operária pode realizar a revolução por quaisquer meios, com a condição de favorecer o desenvolvimento da luta de classes e concentrar o seu fogo sobre os inimigos principais, auxiliando a aceleração das transformações que atingiram a maturidade na sociedade e reunindo assim em seu redor a maioria do povo». O trágico desfecho da revolução chilena, e as lições que dele retiraram os comunistas e os seus aliados na Unidade Popular, não retira validade a esta tese.
A via chilena para o socialismo era isso mesmo, chilena. Como todas as revoluções, o universal e o particular articularam-se de modo dialéctico. Também na altura o PCC realçou que ela foi possível, daquela forma e naquele momento concreto, em «virtude de condições específicas de ordem nacional, mas também, e sobretudo, devido às alterações operadas na arena internacional», em favor do socialismo.
Sessão evocativa a 11 de Setembro
No próximo dia 11 de Setembro, quando passam 50 anos sobre o golpe militar fascista no Chile, o PCP promove pelas 18 horas, no Hotel Mundial, em Lisboa, uma sessão evocativa. A iniciativa conta com a participação de Paulo Raimundo, Secretário-geral do PCP.
____________
ihttps://bibliotecadigital.indh.cl/handle/123456789/455