- Nº 2595 (2023/08/24)

Rearrumação de forças no mundo: o espectro de uma nova ordem que o imperialismo não quer ver nascer

Temas

A guerra na Ucrânia não interrompeu, antes espicaçou e está a precipitar, o rearranjo de forças e da geografia económica e (geo)política do mundo que muitos identificam como a tendência inexorável de emergência de um «mundo multipolar», num tempo em que se assiste à rápida naturalização do conceito de «Sul Global». Isto apesar da elevada turbulência e incerteza que, a múltiplos níveis, marca o actual quadro internacional e, em particular, das sombras e nevoeiro que permanecem em torno do conflito na Ucrânia, na essência uma «guerra por procuração», em perigosa escalada e dirimida de forma cada vez mais directa, entre os EUA, à cabeça do chamado «Ocidente alargado», e a Federação Russa.

O processo em andamento de rearrumação de forças e mudança tectónica mundial traduz-se no crescente protagonismo das potências (países) emergentes e na formação ao longo das últimas duas décadas de novas organizações multilaterais com projecção internacional, como o BRICSi, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX)ii, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC)iii e a União Económica Euroasiática (UEEA)iv, cuja iniciativa escapa ao crivo de Washington e da teia de organizações sob alçada do imperialismo. Este é, sem dúvida, um complexo processo em configuração, com elementos contraditórios, partindo do seio da actual ordem prevalecente. É indissociável do aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e das suas contradições fundamentais e resulta da própria dinâmica de estagnação e crise, marcando a trajectória de declínio relativo da hegemonia dos EUA e das potências capitalistas que formam o G7.

É o reflexo à escala global da tendência de deslocação da produção e do poder económico para o campo das potências emergentes e para a Ásia em especial e, neste contexto, a ascensão da China na economia e política mundiais desempenha um papel central. Ao mesmo tempo, os ingredientes da rearrumação em curso, a emergência da multiporalidade, ou, para outros,  da multilateralidade, dos novos actores e espaços de cooperação de âmbito transnacional e global não só escoram uma revigorada necessidade de defesa do quadro das soberanias nacionais, perante a deriva arbitrária do imperialismo e o diktat das políticas do decadente, mas ainda dominante, paradigma do Consenso de Washington, como não podem deixar de ecoar as aspirações de emancipação dos povos face à ordem internacional prevalecente, injusta e iníqua.

 

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O BRICS simboliza, por excelência, o carácter e a urgência deste processo de mudança na presente fase (cabendo aqui também as suas fragilidades e contradições internas). A jovem organização – realizou a primeira cimeira de chefes de Estado em 2009, ainda como BRIC, e no ano seguinte integrou a África do Sul –, tem uma verdadeira vocação mundial, agrupando as potências «emergentes» de quatro continentes.

O grupo representa hoje mais de 40% da população e perto de 25% do PIB mundiais. Em termos de paridade de poder de compra (PPC), o seu PIB, somando 31,5% do produto mundial, já superou o do G7, cuja quota caiu para 30%. Tudo indica que esta diferença se amplie nos próximos anos, tendência que sairá reforçada com a concretização da ampliação do BRICS em discussão, partindo do formato introduzido do «BRICS Plus».

Neste âmbito, 40 estados já manifestaram interesse em aderir ao BRICS e mais de 20 formalizaram o pedido de adesão, incluindo a Arábia Saudita, Argélia, Argentina, Egipto, Etiópia, Irão e Indonésia. Países de diferentes continentes, sistemas políticos e níveis de desenvolvimento e que integram outras organizações inter-governamentais «regionais», cujo protagonismo tem também ganhado terreno (ASEAN, CELAC, União Africana, OCX, etc.).

No seio do BRICS, foi constituído em 2015 o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) com sede em Xangai, cuja presidência rotativa é presentemente assumida por Dilma Rousseff. Além dos cinco membros fundadores, o número de sócios do NBD alargou-se com a entrada do Bangladesh, Egipto, Emirados Árabes Unidos e Uruguai. Outros países estão na calha.

 

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É um facto que o interesse na adesão ao BRICS se intensificou com a escalada de confrontação do imperialismo, tão expressa na guerra na Ucrânia e a degradação qualitativa da situação internacional, num quadro que prenuncia uma nova recessão económica. O alarme geral foi lançado pela espiral de sanções contra a Rússia impostas por Washington e seguidas, basicamente, pela UE, G7 e demais países do chamado «Ocidente alargado» (do sequestro de 300 mil milhões de dólares das reservas de divisas e ouro da Rússia na Europa e nos EUA, cerca de metade do total das reservas russas, à exclusão do sistema de pagamentos SWIFT de grande parte do sistema bancário russo, passando pelo «boicote» ao gás e petróleo russos e a destruição dos gasodutos Nord Stream – que, não menos que a Rússia, afecta a Alemanha e a UE).

O sentimento de incerteza e insegurança económica alastrou no Sul Global, envolvendo, muito para lá do rol em crescendo de estados sancionados, um conjunto diversificado de países, incluindo potências emergentes e intermédias, dividindo e ameaçando subverter afinidades e alinhamentos políticos. Ninguém quer ser atingido pelos morteiros da doutrina revisionista do «mundo baseado em regras» com centro de decisão na Casa Branca, nem pelo «fogo amigo» das sanções de alcance extraterritorial. Para não referir as acções de puro terrorismo, a ingerência aberta e ameaça de «revoluções coloridas»…

É neste contexto, em pano de fundo da lenta e incerta recuperação mundial da «recessão pandémica», quando as economias ainda não se refizeram dos efeitos profundos da crise de 2007-2008, que se tornou perceptível o efeito boomerang sobre as cadeias de produção e valor globais – e as próprias economias centrais do capitalismo – da guerra económica e tecnológica imposta pelos EUA à China e das sanções draconianas visando a Rússia, e se assiste à corrida ao BRICS.

A par do reforço do comércio intra-BRICS, dá-se um novo salto nos acordos com vista à utilização das moedas próprias, sobretudo no comércio internacional, torneando o dólar. Grande parte do comércio entre a Rússia e a China já se realiza em yuans e rublos; Pequim negoceia com a Arábia Saudita o pagamento em yuans de parte das importações de petróleo do país do golfo, juntamente com a Rússia, o seu maior fornecedor de crude; a Índia já paga em yuans parte do petróleo que compra à Rússia e acaba de acordar com os Emirados Árabes Unidos o uso das moedas nacionais no comércio bilateral; a Argentina, recordista mundial da dívida ao FMI, passou a pagar em yuans as importações da China e utilizou a moeda chinesa na última amortização ao FMI.

Na América do Sul, a par dos esforços para reerguer a UNASUR ou uma organização análoga (e lembre-se que com Bolsonaro o Brasil abandonou a UNASUR e a CELAC, mas não o BRICS), volta a falar-se da criação de uma moeda comum. Em Abril, em Xangai, na sede do NBD, Lula foi lapidar: «toda noite me pergunto por que todos os países estão obrigados a fazer o seu comércio lastreado no dólar»v. É apenas uma amostra de uma realidade alarmante para Washington e que representa um novo patamar na erosão da posição dominante do dólar e do estatuto do petrodólar, significando, em perspectiva, um risco existencial para a preponderância dos EUA nas finanças e economia mundiais.

 

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Em Pequim, o discurso oficial salienta que o mundo actual passa por transformações não vistas nos últimos 100 anos. Isto é, desde o marco da Revolução de Outubro na Rússia. A China é o grande pivot da rearrumação de forças no mundo e das mudanças tectónicas em curso. Não teria chegado aqui sem a grande revolução de 1949 e a defesa da orientação socialista, por muito sinuoso que seja o caminho. Nunca na história, porventura, um país conheceu transformações de tamanha dimensão num lapso temporal tão comprimido, como a China contemporânea.

A dramática ascensão económica do país com uma população de 1400 milhões (só a Índia está também neste escalão) está a mudar o relevo da economia mundial. Se em 2000 o PIB da China superou os 10 biliões de yuans, em 2022 ultrapassou os 120 biliões (12 vezes mais). A segunda economia mundial – na verdade, a maior economia do mundo em PIB PPC – alberga a mais completa cadeia industrial do globo e converteu-se numa potência tecnológica, na vanguarda em vários domínios. É o principal parceiro comercial de mais de 100 países, incluindo algumas das maiores economias capitalistas (como o Japão, a Alemanha e a UE no seu todo, o Brasil, a Coreia do Sul e a Austrália).

Fundador de organizações distintas como a OCX, BRICS e RCEP (maior «bloco» comercial do globo), o país governado pelo Partido Comunista da China é o impulsionador de grandes projectos de cooperação e investimento internacionais, nomeadamente no âmbito da Nova Rota da Seda, dos Fóruns China-África e China-CELAC e cooperação Sul-Sul. Iniciativas que no seu conjunto lançam as bases da transição para uma nova era de desenvolvimento global mais equitativo, embrião de uma nova ordem económica internacional.

 

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A parada é muita alta. A velha ordem parasitária não se dá por vencida. O imperialismo usa a coacção e a guerra para prolongar uma hegemonia condenada. O objectivo de subverter o desenvolvimento da China e a sua natureza socialista é claro. A campanha hostil do imperialismo espera tirar partido das contradições e desafios colocados à China nos planos interno e externo.

Enquanto anseiam quebrar e submeter a Rússia, encarada como santuário de recursos e elo estratégico mais fraco, Washington e o rebanho disciplinado de aliados pressionam a China através de uma rede de alianças regionais (AUKUS, Quad, etc.), a configuração de uma espécie de NATO asiática, tentando dividir a ASEAN, e a chantagem em torno de Taiwan. Compelem e tentam atrair o governo de direita integrista da Índia para o seu campo, aproveitando os diferendos e tensão existentes entre Nova Deli e Pequim, mas subestimam arraigados sentimentos anticoloniais na antiga jóia da coroa britânica.

Nesta confrontação sistémica, o tempo não favorece o imperialismo. Dificilmente, a guerra económica e tecnológica logrará o objectivo de travar a dinâmica de desenvolvimento da China. Mais provável é que o movimento de «desacoplagem», o curto-circuitar e segmentação das cadeias produtivas internacionais se acabe por virar contra os seus promotores, agrave as debilidades e o estado de convulsão interna nos EUA e continue a minar a situação económica internacional.

 

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Joanesburgo recebe, assim, a Cimeira do BRICS, a 22-24 de Agosto, para discutir os critérios de alargamento. Na actual encruzilhada, não se ignoram as diferenças e limitações no seu seio e o poder das «quintas colunas». Há um caminho de luta a percorrer para tornar as preocupações económicas e interesses convergentes do Sul Global – e dos povos – em efectivas alternativas de cooperação. Sem nunca perder de vista, em cada momento concreto, o inimigo principal.

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i Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

ii China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Índia, Paquistão e Irão. Na recente cimeira, organizada pela Índia, foi aprovado o início do processo de adesão da Bielorrússia como membro de pleno direito.

iii Congrega os 33 países da América Latina e Caraíbas, o que equivale a todos os estados independentes do continente americano, à excepção dos EUA e Canadá.

iv Rússia, Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão e Quirguistão. Cuba é um dos membros observadores.

v https://www.estadao.com.br/politica/lula-contesta-na-china-poder-do-dolar-entenda-como-a-moeda-americana-se-tornou-referencia-global/


Luís Carapinha