As Portas Que Abril Abriu, de José Carlos Ary dos Santos, com ilustrações de Filipa Malva
Esta edição de As Portas que Abril Abriu é um objecto de rara qualidade literária e artística
A Biblioteca Municipal José Carlos Ary dos Santos, em Sacavém, tem patente até 30 de Setembro, uma notável exposição dos originais das ilustrações que Filipa Malva criou para a belíssima edição desse épico da nossa memória colectiva, esse exaltante manifesto poético que é As Portas que Abril Abriu.
As 50 aguarelas que Filipa Malva imaginou para o canto que regista, de modo sublime, esse dia maior e levantado das nossas vidas, reflectem a íntima e cúmplice ligação da artista com as palavras, o espírito, o ritmo e o enquadramento político desta singular obra de Ary dos Santos. Telas em que o negro e o cinza sublinham os dias da barbárie, Era uma vez um país/onde entre o mar e a guerra/vivia o mais infeliz/dos povos à beira terra, a que não falta a bicicleta, símbolo das caminhadas resistentes, até progressivamente se abrir num branco luminoso e em sereníssimo azul, em que a escolha da vida se levanta contra o viva la muerte dos fascismos ibéricos e Foi então que Abril abriu/as portas da claridade/ e a nossa gente invadiu/a sua própria cidade, e as aguarelas de Filipa Malva explodem em sol e restos da longa noite a esboroarem e o vermelho festivo dos cravos das manhãs de Abril e Maio se confunde com o sangue dos que tombaram para que a Liberdade fosse possível e o povo pudesse, algo confuso e expectante nos traços da artista, recuperar a voz e domar o destino, subindo a pulso esse íngreme caminho.
E eis-nos num vibrato magnifico, no fulgor quente das cores, no negro que persiste resistente, agora em braços erguidos, impedindo o regresso à vergonha, Agora que já floriu/a esperança da nossa terra/as portas que Abril abriu/nunca mais ninguém as cerra; o vermelho que se alarga, o azul que ganha outra dimensão simbólica. É o país a sentir as ondas da Liberdade, o júbilo da festa colectiva, a fome que começa a debelar-se pelo trabalho e pelos frutos da Reforma Agrária, a mais bela das promessas de Abril que Novembro não deixou que se cumprisse: No Minho com pés de linho/no Alentejo com pão/no Ribatejo com vinho/na Beira com requeijão/ no Algarve maçapão/vindimas no Alto Douro/tomates em Azeitão/azeite da cor do ouro/que é verde ao pé do Fundão/e fica amarelo puro/nos campos de Baleizão.
No final desta magnífica edição de As Portas que Abril Abriu, Filipa Malva dá-nos uma impressiva aguarela de um resistente e da sua bicicleta, o braço vermelho erguido e o punho fechado. A luta continua, a Liberdade, a Paz e o Pão são tarefas diárias, contínuas: é preciso pedalar, seguir em frente e prosseguir a longa caminhada.
José Carlos Ary dos Santos foi o mais consequente poeta de Abril, o que esteve sempre, fraterno e cúmplice, na primeira linha do combate; o poeta generoso e sensível, que mascarava, com o manto diáfano dos excessos, a sua íntima, profunda angústia existêncial; poeta que era, igualmente, a voz que plena, emotiva e certeiramente clamava as palavras necessárias e urgentes; o poeta solidário, morrendo aos poucos de ternura; o poeta dos instantes emblemáticos, dos dias irrepetíveis de Abril.
Mesmo no rumor fundo do silêncio, da submissão e do conformismo que nos querem impor, as palavras de Ary dos Santos continuarão a estar vivas, a ressoar como um alerta aos nossos ouvidos despertos, a caminhar ao nosso lado. Dado que, por muito que o tentem calar, um poeta nunca canta sozinho e, mesmo morto, a sua voz ecoará no descampado, viverá nas palavras que dele herdámos, são parte da voz que temos, desse colectivo brado que afirma sem temor que das entranhas da terra hão-de passar/o tempo da humana gestação/e parir como um rio a rebentar/o corpo imenso da Revolução.
Ary foi mais do que um grande poeta, um expressivo inventor de metáforas, de imagens que percorrem, quase 50 anos volvidos sobre a madrugada que sonhámos, o nosso mais sensitivo território de afectos e de luta. Esta edição de As Portas que Abril Abriu, conjugando o verbo do poeta com o traço de Filipa Malva, é um objecto de rara qualidade literária e artística: um fecundo e dialéctico diálogo entre a pintura e a palavra.