Uma viagem ao interior do Carnaval de Torres Vedras

«Carnaval de Torres Vedras – Tradição popular. Sátira política e crítica social» é o título de uma das exposições em destaque no Espaço Central da Festa do Avante!. A celebrar o seu centenário em 2023 e incluído já no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, esta tradição é demonstrativa da criatividade popular ao longo das décadas.

O Carnaval de Torres Vedras é organizado anualmente com grande envolvimento da comunidade

Depois das exposições em torno do Barro Preto de Bisalhães, dos Bonecos de Santo Aleixo ou das levadas da Madeira, este ano a Festa mergulha a fundo no Carnaval de Torres Vedras, na sua história, nas suas características, na sua dimensão profundamente popular. A exposição tem o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras, da empresa municipal Promotorres e do Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras.

O pretexto para abordar este tema não podia ser melhor: a comemoração do seu centenário. Ou, mais correctamente, do centenário do surgimento do primeiro Rei do Carnaval, em 1923, ano em que os festejos de rua ganham a forte expressão que ainda hoje mantêm.

Foi nesse ano que se realizou a primeira recepção do Rei do Carnaval, que consiste num cortejo «real», com início na estação ferroviária e seguindo até ao Centro Histórico, passando pelas associações recreativas. No cortejo, para além do Rei, seguiam os «ministros», as matrafonas e a banda dos bombeiros. A primeira «Rainha», na verdade um homem disfarçado, surgiria no ano seguinte. «Rei» e «Rainha» são oriundos da comunidade local.

Nunca se afastando da tradição, o Carnaval de Torres Vedras continuou a evoluir com o passar dos anos: durante a década de 30 foram introduzidos os carros alegóricos e na de 60 os zés-pereiras. Mais tarde, já nos anos 90 do século XX, passa a realizar-se o corso escolar, o Carnaval de Verão em Santa Cruz, e o Monumento ao Carnaval, então designado como o «lançamento da primeira pedra». Os «cavalinhos» musicais, o Concurso de Grupos de Mascarados e o Corso trapalhão são outras inovações mais recentes e já em 2014 teve lugar o primeiro concurso de matrafonas. O Carnaval de Torres Vedras cedo conquistou projecção nacional, constando nos guias turísticos, merecendo transmissões televisivas em directo e atraindo gente de todo o País, e até do estrangeiro.

Da tradição ao Carnaval na rua
O Carnaval de Torres Vedras, como hoje o conhecemos, apresenta características tipicamente urbanas, ao mesmo tempo que mantém particularidades do entrudo rural, desde logo o «julgamento» e a «queima do entrudo», que permanecem no actual figurino. Estas são tradições antigas, que subsistiram durante séculos: a primeira referência conhecida dos festejos do Entrudo em Torres Vedras, aliás, remonta a 1574 e, curiosamente (ou talvez não), é uma queixa de um morador, incomodado com uns jovens que «corriam o galo» no dia de Entrudo, hábito comum noutras regiões do País.

Durante todo o século XIX e até 1920 o Carnaval era festejado sobretudo em casas particulares e sociedades recreativas. Aqui, os programas consistiam em bailes ou peças de teatro. Fora raríssimas excepções, não tinha expressão pública nem envolvia máscaras. Algumas das brincadeiras carnavalescas mais típicas, aliás, não eram então bem vistas – nem pelas autoridades nem pela generalidade das pessoas.

Houve excepções a este carácter mais «reservado» do Carnaval, designadamente em 1908 e 1912, o que poderá estar relacionado com a elite republicana local, que terá aproveitado os festejos para caricaturar o contexto político da época. No primeiro desses anos, o do regicídio, um grupo de mascarados satirizou os apoiantes de João Franco (que governou entre 1906 e 1908), parodiando quatro anos mais tarde as tropas contra-revolucionárias de Paiva Couceiro, que tentaram restaurar a monarquia.

Esta última manifestação teve até expressão na revista Ilustração Portuguesa, que sobre ela escreveu: «Em Torres Vedras: paródia carnavalesca “Invasão dos Paivantes” o exército afugentado pelo “Zé Povinho”, que lhes atira uma bomba de 5 reis.» Esta sua vertente satírica (e por vezes até abertamente política) levou não raras vezes à actuação da censura e da polícia política, durante a ditadura militar e o fascismo.

É já na década de 1920 que começam os cortejos e burricadas de rua, influenciados pelos cortejos estudantis de Lisboa. As colectividades mantiveram sempre um papel fundamental na organização dos festejos.

Aliado ao Carnaval urbano, na cidade, o entrudo rural persistiu nas aldeias.

 

A festa

O Carnaval é uma manifestação social, performativa e ritual, protagonizada por toda a comunidade, independentemente da proveniência geográfica, género ou idade, e que se encontra fortemente enraizada na identidade colectiva. Destaca-se o envolvimento da comunidade na realização da festa.

A festa de rua, que remonta às primeiras décadas do século XX e se tem perpetuado e recriado ao longo dos anos, estrutura-se em três momentos-chave: 1) a chegada dos reis à estação ferroviária/ entronização; 2) os corsos; o 3) enterro do Entrudo, na quarta-feira de cinzas.

 

Elementos singulares

O «Rei» e a «Rainha» do Carnaval e símbolos associados

Destaca-se a tradição da selecção de dois homens da comunidade para desempenharem o papel de «Rei» e «Rainha» do Carnaval, assim como os seus símbolos, que persistem desde o início do século XX.

Existência de uma titulatura ou «dinastia» régia

Associada à tradição dos reis do Carnaval, existe uma dinastia dos títulos dos reis, os quais mudam anualmente (mesmo que o reinado dure mais tempo). Os nomes são escolhidos satirizando os assuntos mediáticos contemporâneos.

A linhagem real teve início em 1923 (sem rainha) e a partir de 1924 (com rainha). Os primeiros representantes foram Álvaro André de Brito (Rei) e Jaime Alves (Rainha).

A Matrafona como fenómeno social e colectivo

A tradição dos homens da comunidade se fantasiarem de matrafona (desde o início do século XX) configura-se num fenómeno social colectivo e intergeracional, que se traduz numa afirmação identitária da comunidade transmitida e veiculada de geração em geração. Esta figura típica do entrudo rural, que subsiste no Carnaval de Torres Vedras, é exemplo da transgressão de regras sociais, através da inversão dos papéis sociais do homem e da mulher.

O ritual de chegada dos reis à estação ferroviária e entrega das chaves

A chegada dos reis/entronização, com partida na estação de caminho-de-ferro, culmina na entrega das chaves aos reis pelo presidente da Câmara.

Envolvimento e participação da comunidade

Na preparação da festa destaca-se o envolvimento da comunidade, quer pela forte participação das associações carnavalescas ou foliões, quer pelo investimento canalizado pelos indivíduos na seleção, preparação ou aquisição da máscara e reforço de redes de sociabilidade no seio dos grupos e comunidade.

 

Os corsos

Os corsos carnavalescos foram, no essencial, copiados dos modelos de Lisboa, Porto e Coimbra, que por sua vez replicam os modelos franceses e italianos dos corsos de Nice, Paris ou Veneza. Surgiram, em Torres Vedras, na década de 1930, pela mão de grupos sociais emergentes, como resposta aos velhos padrões do entrudo rural e popular.

Apesar de assumidamente burguês, na sua origem, o corso manteve o arremesso de objectos, substituindo-se porém a farinha, os ovos ou as laranjas por serpentinas ou flores. A batalha de flores, aliás, é um exemplo paradigmático do jogo do entrudo expresso de uma forma mais «sofisticada».

Este novo Carnaval, contudo, colocava barreiras à participação popular: enquanto as classes mais abastadas ostentavam o seu «estatuto», as classes populares assistiam. Em Torres Vedras, porém, não existiam barreiras físicas entre participante e espectador e ainda hoje este corso é marcado pela intensa participação popular, as mascaradas, as partidas de rua, os homens e rapazes disfarçados de mulheres, as célebres matrafonas.

Os cabeçudos continuam a desempenhar o seu papel, marcando o ritmo e a animação, assim como os carros alegóricos, que desfilam em todos os corsos à exceção do nocturno.

 

 

Nota: texto construído à base do Registo do Carnaval de Torres Vedras no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial

Fotografias cedidas pelo Centro de Arte e Criatividade de Torres Vedras/CAC