Fim dos Certificados de Aforro a 3,5%, mais um exemplo de submissão à banca

No dia 2 de junho de 2023, foi repentinamente anunciada a suspensão da emissão de Certificados de Aforro da Série E, com uma remuneração de 3,5%. Esta decisão do Governo surge após declarações de responsáveis da banca, designadamente o chairman do Banco CTT, João Moreira Rato, apelando ao Governo que suspendesse a emissão de Certificados de Aforro (CA).

Portugal é dos países em que a população mais sofre com a política de juros do BCE e, também, um dos países em que a banca mais ganha com os aumentos dos juros

Entretanto, muita tinta tem corrido sobre este assunto, e importa abordar o que está em causa com esta decisão.

 

1. A margem financeira da banca e os instrumentos de intervenção pública

A banca portuguesa continua a ser das que menos remunera os depósitos a prazo em toda a Zona Euro. A média nacional é de cerca de 1% quando a média da Zona Euro é superior a 2%. Ao mesmo tempo, é das que mais ganha com o aumento de juros do crédito à habitação, devido à elevada percentagem de créditos a taxa variável (em vários países europeus a maioria é taxa fixa).

A margem financeira – ou seja, o que os bancos ganham com a diferença entre a taxa de juro que pagam (aos depositantes) e as taxas de juro que cobram (a quem tem créditos) – aumentou significativamente. O próprio Banco de Portugal reconhece que esta diferença «aumentou 142 [pontos base], em Portugal, e 15 [pontos base], na área do euro, contribuindo para efeitos preço positivos sobre a margem financeira»1. Portanto, a margem financeira aumentou em Portugal 9,5 vezes mais do que na média da Zona Euro em resultado da diferença entre juros pagos e cobrados. Como se vê, Portugal é um dos países em que a população mais sofre com a política de juros do Banco Central Europeu, mas é também um dos países em que a banca mais ganha com estes aumentos dos juros.

 

O Governo mais uma vez não desiludiu os grandes interesses: prontamente, acabou com a Série E (com remuneração de 3,5%) e criou uma nova, que tem como limite máximo 2,5%

 

A decisão do Governo é tomada neste contexto, em que os cinco maiores bancos obtiveram lucros de 2500 milhões de euros em 2022 (mais 70% que no ano anterior), muito à custa do aumento brutal da margem financeira (e das comissões cobradas), que continua em 2023, sem que o Banco de Portugal ou o Governo façam alguma coisa para combater esta desproporção.

É de sublinhar ainda as visíveis hesitações de PSD, Chega e IL, na reacção a esta notícia: por um lado a vontade de desancar no Governo face a esta medida, por outro, a umbilical relação entre estas forças políticas e os interesses da banca.


2. A gestão da dívida pública e o falso dilema «aforristas – contribuintes»

Entretanto, a correr atrás do prejuízo, quer o Governo quer comentadores ao serviço dos interesses do grande capital introduziram a ideia de que esta decisão tinha por objectivo poupar recursos ao Estado para poderem ser investidos em benefício de todos, aforristas ou não. Estamos a falar do mesmo Governo que recusa esses investimentos sempre que o PCP os propõe, mas adiante.

 

Em Portugal, os cinco maiores bancos obtiveram lucros de 2500 milhões de euros em 2022 (mais 70% que no ano anterior), muito à custa do aumento brutal da margem financeira e das comissões cobradas

 

Olhemos então para as alternativas de financiamento da dívida pública. Em Março de 2023, o Estado português financiou-se em 915 milhões de euros com dois leilões nos mercados financeiros internacionais. Resultado: num leilão com maturidade de 9 anos e 4 meses, pagará uma taxa de juro de 3,55%; num outro, com maturidade de 12 anos e 8 meses, pagará uma taxa de juro de 3,74%, em ambos os casos valores superiores aos do valor máximo dos CA Série E (3,5%, podendo eventualmente baixar no futuro).

Na segunda-feira seguinte à decisão de acabar com a série E, os juros da dívida portuguesa a 10 anos estavam a 3,02%. Ainda que seja inferior à taxa de 3,5%, há vários aspectos que não podem ser esquecidos. É que a emissão destes CA cumpria pelo menos três funções económicas importantes:

1) remunerar a poupança dos portugueses, tantas vezes falada e agora afinal secundarizada quando os interesses da banca falam mais alto;

2) garantir a titularidade de dívida pública portuguesa por residentes, como elemento importante para a que a dívida pública esteja menos exposta aos mercados internacionais2;

3) a já referida função de «empurrar» a remuneração dos depósitos na banca para níveis superiores, só atingível com a adição de mais instrumentos nesse sentido (pedir «um esforçozinho», como fez o Presidente da República, não basta).

 

Não há um conflito entre «aforristas» e «contribuintes». Há sim uma total submissão do Governo aos interesses da banca, de que esta decisão é exemplo flagrante

 

Além destas funções, que só por si justificariam a diferença pouco substantiva a favor dos aforradores nacionais em relação aos «mercados», há uma outra: é que, considerando que a maioria dos aforristas são residentes, os rendimentos obtidos com os CA são tributados em Portugal, ao contrário do que acontece com a maioria dos credores dos mercados financeiros. Portanto, dos 3,5%, o Estado «recupera» quase um ponto percentual em imposto (do ponto de vista das contas públicas, os 3,5% «saem» a 2,52%), o que não acontece quando se financia lá fora3.

 

A (curta) história da série E

Mas onde entram aqui os Certificados de Aforro (CA)? Criada em 2017, numa altura em que os juros eram negativos, a Série E dos CA pagava um juro correspondente à Euribor a três meses acrescida de 1%, não podendo ser superior a 3,5%. Ora, com os juros do BCE a aumentar, os CA desta série estavam a remunerar à taxa de 3,5%. Como a banca continua a pagar cerca de 1% nos depósitos a prazo, os CA tornaram-se um produto mais atractivo, havendo muitos consumidores que aí investiram as suas poupanças: só entre Janeiro e Março, foram 7,6 mil milhões de euros que saíram da banca para os CA.

Ora, se é verdade – como diz a banca – que os bancos estão com «muita liquidez» (estão cheios de dinheiro, por assim dizer) e que por isso não precisavam de aumentar os juros aos depositantes, também é verdade que os bancos estavam a ficar incomodados com a perda de depositantes (e portanto de clientes) para os CA. Perante esse incómodo, tinham duas hipóteses: ou aumentavam os juros que pagam aos depositantes, abdicando de uma parte dos seus lucros colossais para «segurar clientes»; ou faziam pressão para que estes CA acabassem. Claro que foram para a segunda hipótese, e o Governo mais uma vez não desiludiu os grandes interesses: prontamente, acabou com a Série E e criou uma nova, que tem como limite máximo 2,5%.

Assim, o Governo que nada faz para garantir uma mais adequada remuneração dos depósitos e para baixar as prestações da casa, é o mesmo Governo que responde de forma rápida aos anseios da banca para remover um dos poucos obstáculos à continuação deste abuso de poder. Esta decisão foi um favor à banca, quando o que se impunha era o contrário: aumentar os instrumentos de intervenção no mercado, mobilizando por exemplo o banco público, a CGD, para esse efeito.

Ainda se verá o que mais a banca vai ganhar com a medida anunciada no mesmo dia, de passar a permitir que os CA sejam vendidos aos balcões dos bancos, tendo como contrapartida uma comissão paga pelo Estado.


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1«Inquérito aos Bancos sobre o Mercado de Crédito», Abril de 2023, Banco de Portugal

2No final de 2022, do total de dívida pública (287 mil milhões de euros), a parte detida por residentes era de apenas 26%, dos quais 12% em Certificados de Aforro ou do Tesouro. O Japão, por exemplo, tem cerca de 90% da sua dívida pública detida por residentes

3Consideramos a taxa liberatória para rendimentos de capital, de 28%; para alguns aforristas, com rendimentos mais baixos, a taxa de IRS pode ser inferior





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