Uma nova justiça

Sérgio Dias Branco

Os primeiros filmes de João César Monteiro foram restaurados pelo laboratório do ANIM

A 6 de Outubro de 1996 nasceu o ANIM – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, localizado na freguesia de Bucelas, concelho de Loures. Desde então, esta estrutura tem cumprido a função conservadora da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, quando concentrou e substituiu os depósitos de filmes e serviços técnicos existentes nas décadas anteriores, dispersos por quatro lugares diferentes. Tal significou igualmente um alargamento das valências laboratoriais e arquivísticas em torno do património de imagens em movimentos, nomeadamente das obras de cinema produzidas em Portugal. Conservando um fundamental acervo cinematográfico em formato analógico, o laboratório do ANIM tem trabalhado na digitalização, com ou sem restauro, de obras fundamentais do cinema português.

Um dos filmes que pode ser visto numa cópia digital restaurada recentemente é Veredas (1978), terceira longa-metragem de João César Monteiro. Foi recentemente exibido na Mostra de Cinema Português de Tema Medieval, organizada pelo Centro de História da Sociedade e da Cultura na Casa do Cinema de Coimbra no mês passado. Ver esta esplendorosa cópia é de alguma maneira encontrar Veredas pela primeira vez. Certamente acontecerá o mesmo com os marcantes títulos portugueses que estão em processo de digitalização e restauro.

Na filmografia de Monteiro, Veredas segue-se às longas-metragens Fragmentos de um Filme-Esmola - A Sagrada Família (1975) e Que Farei Eu com Esta Espada? (1975). A primeira é uma ficção irreverente e provocatória, rodada entre 1972 e 1973, e produzida pela cooperativa Centro Português de Cinema. A segunda é uma obra mordaz que versa sobre o imperialismo americano, o capitalismo português, e as linhas ideológicas que os unem, a pretexto da contestada presença de navios da NATO em Lisboa. Como referiu o realizador na altura de estreia: «O filme procura referir, pelo contraste, como é possível lutar com uma espada contra a poderosa esquadra americana.»

Ou seja, Veredas sucede a um dos filmes mais vincadamente políticos do cineasta. O projecto artístico desta obra tem uma forte ligação ao processo revolucionário iniciado com o 25 de Abril de 1974, mas a rodagem decorreu num período politicamente tenso, entre Novembro de 1975 e Julho de 1977. O filme «fabricado por João César Monteiro», como se lê no genérico inicial, organiza-se de acordo com a pulsação da comunidade humana e de todas as outras coisas vivas que habitam no território português. O coração que pulsa é uma mulher e feiticeira, Branca-Flor (Carmen Duarte), cuja história é contada a partir dos Contos Tradicionais Portugueses, escolhidos e comentados por Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira. O itinerário pelo país, de Trás-os-Montes ao Alentejo, tem um cunho poético e atravessa oito séculos, combinando lendas, mitos, folclore, e tradições. As regiões e os imaginários dialogam através da força do povo como sujeito da sua própria história.

Tal como Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, Veredas empenha-se numa etnografia de salvaguarda, procurando guardar elementos de uma cultura ligada à terra e à água, desvalorizada pela modernidade burguesa, mas resistente ao desaparecimento. Na tragédia Euménides de Ésquilo, assim como nos fragmentos escritos por Maria Velho da Costa a partir das imagens, o cineasta encontrou, de acordo com o próprio, uma «vocalização coral» com «um significado político muito preciso» que liga a Grécia antiga ao Portugal de Abril na «fundação de uma nova justiça, mais humana, mais democrática». As diferentes figurações do mal e as referências à servidão constroem parábolas sobre a opressão na sociedade e na família e a possibilidade de libertação colectiva e individual no sul e no norte de Portugal.




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