- Nº 2582 (2023/05/25)

A flagrante actualidade de Marx e do seu Salário, Preço e Lucro

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«A obra de Marx Salário, Preço e Lucro cumpre um duplo papel. Tanto valoriza a luta dos trabalhadores pelo aumento de salários quanto mostra as limitações dessa luta, colocando a necessidade da luta política mais geral pela superação do capitalismo», afirmou o Secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, numa sessão pública realizada anteontem, em Lisboa.

O lema «Salário, Preço e Lucro – uma questão actual» revelava o objectivo da sessão, reafirmado por Vasco Cardoso, da Comissão Política, logo na intervenção de abertura: revisitar aquela obra específica do filósofo e revolucionário alemão não para recuar mais de 150 anos, mas para «usar a teoria, os conceitos e os ensinamentos de Marx para melhor compreender a realidade actual e agir para a transformar».

Foi precisamente isto que fizeram, durante toda a tarde, os vários oradores: economistas, professores universitários, dirigentes e activistas sindicais e de outras organizações sociais e de massas. Demonstrando um conhecimento alargado dos mecanismos da exploração capitalista revelados pelo fundador do socialismo científico e uma ligação profunda às aspirações e lutas dos trabalhadores e ao povo, desmontaram uma por uma as teses com que o grande capital procura justificar (e legitimar) a inflação, a manutenção dos baixos salários e os elevados lucros que acumula ano após ano, com particular dimensão em 2022.

A inflação, que marca de modo tão impressivo a realidade actual, foi um dos fenómenos mais aprofundadamente analisados na sessão, dirigida por Graciete Cruz, do Comité Central, tendo na mesa, para lá dos oradores, Agostinho Lopes, responsável pela Comissão dos Assuntos Económicos do PCP, e Francisco Melo, director das Edições Avante!, que têm a referida obra no seu catálogo.

 

O exemplo da inflação

Se não era necessário, como notou Vasco Cardoso, estarmos num período de elevada inflação para justificar este retorno a Marx, «ela aí está, a corroer diariamente salários e pensões e a devorar o poder de compra de milhões de trabalhadores, reformados e outras camadas laboriosas».

Então como hoje (ou não estivéssemos a falar de algo que está na própria natureza do capitalismo), a causa principal da inflação está na redução da oferta, causada por dificuldades no aparelho produtivo, como a falta de investimento pelos capitalistas, a deslocação do capital para operações especulativas mais rentáveis ou mesmo outras perturbações extraordinárias nos aparelhos produtivo e de distribuição das mercadorias, como sucedeu com a pandemia de COVID-19 e, depois, com a guerra e as sanções.

A esta realidade associa-se agora o descarado aproveitamento pelos grupos económicos produtores e fornecedores de bens essenciais, com forte poder de mercado, para fazerem crescer margens comerciais e praticarem preços especulativos – até o Banco de Portugal e o BCE o confirmou, em estudos recentes.

Ora, e como bem demonstraram vários dos oradores da sessão, se a causa da inflação se encontra do lado da oferta, a receita aplicada pela generalidade dos Estados capitalistas, incidindo sobre a procura – a contenção dos salários e do investimento e a subida acelerada das taxas de juro – é à partida ineficaz. Ou seria, se o objectivo fosse mesmo conter a inflação. Mas não é: trata-se apenas e só de proteger os lucros e os interesses dos grupos económicos e das multinacionais, sagrados – por cá – para PS, PSD, CDS, Chega e IL.

Como sublinharia mais adiante Paulo Raimundo, já no tempo em que Karl Marx escreveu Salário, Preço e Lucro para uma reunião da I Internacional, havia quem associasse o aumento dos salários à subida dos preços – tese recuperada nos nossos dias, com o alegado risco de espiral inflacionista que decorreria de significativos aumentos salariais. É precisamente nessa obra que Marx demonstra que «o aumento geral na taxa de salários, após uma perturbação temporária dos preços de mercado, resultaria apenas numa queda geral na taxa de lucro, sem qualquer mudança permanente no preço das mercadorias».

 

Resposta progressista

O Secretário-geral do Partido apresentou ainda o que outro orador denominara de «resposta progressista à inflação»: um conjunto de medidas que não só fazem frente à subida dos preços e à suas causas como, juntas, dão corpo a um novo modelo, que confronta os interesses dos grupos económicos e das multinacionais e rompe com o actual, «assente nos baixos salários, na precariedade e na desregulação dos horários e com a legislação laboral que lhe está associada».

O aumento geral dos salários e das pensões é uma primeira medida, essencial para recuperar o poder de compra perdido e inverter a tendência para o empobrecimento que marca os últimos anos. Quanto ao mito de que a «redução dos preços se alcançaria com a diminuição dos impostos», Paulo Raimundo garantiu ser a própria realidade a desmenti-lo: «A redução do ISP nos combustíveis ou o IVA zero em vários produtos alimentares, revelam a falácia desta conversa. Não travaram o aumento dos preços nestes meses, diminuíram a receita fiscal e asseguram os lucros escandalosos dos grupos económicos e das multinacionais.» Aliviar os trabalhadores e o povo e taxar efectivamente o grande capital, nomeadamente os seus lucros escandalosos, é a proposta do PCP para uma política fiscal mais justa.

Os comunistas defendem também a regulação e redução dos preços de bens e serviços essenciais, «possível e necessária no actual contexto»: nos alimentos e nas margens da grande distribuição, na energia, nas telecomunicações, na habitação. O Estado deve intervir no mercado, esclareceu, «não para beneficiar os grandes interesses, como tem feito», mas para «proteger o povo face à inflação, as micro, pequenas e médias empresas face à predação dos grupos monopolistas, os pequenos produtores agrícolas e os pescadores face ao aumento dos custos dos factores de produção».

Da compreensão do capitalismo à sua superação revolucionária

No texto Salário, Preço e Lucro, lembrou Vasco Cardoso, Karl Marx tira três conclusões: 1) uma subida geral nas taxas dos salários resultaria numa queda da taxa geral de lucro, mas não afectaria os preços das mercadorias; 2) a tendência geral da produção capitalista não é para elevar, mas para afundar o nível médio dos salários; 3) os sindicatos funcionam bem como centros de resistência contra as investidas do capital, mas fracassarão se se limitarem a uma guerra de guerrilha contra os efeitos do sistema capitalista – é preciso ir mais longe: «usarem as suas forças organizadas como uma alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição do sistema de salários», ou seja, para superarem o capitalismo, superarem uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem.

No mesmo sentido, Paulo Raimundo valorizou que a importância de Marx não se limitou ao facto de ter desvendado os principais mecanismos de funcionamento do capitalismo. Identificou também a «questão decisiva: os trabalhadores não são, não podem ser, apenas espectadores do mundo. Da sua força, da sua unidade, da sua luta depende não apenas a melhoria das suas condições de vida, mas também a evolução do rumo da história, no confronto com as injustiças e a exploração e na afirmação de uma sociedade mais justa, democrática e progressista, de uma sociedade sem exploradores nem explorados». Nessa luta, garantiu o dirigente comunista, terão a seu lado o PCP.

A traço grosso podemos afirmar que da riqueza, do valor produzido pelo trabalhador, uma parte destina-se a pagar a mercadoria força de trabalho, o que designamos por salário, a outra para o lucro. Esta é a essência de muitas lutas e combates ao longo de anos. Os que lutam por melhores salários, os que procuram assegurar o máximo de lucros à custa da desvalorização dos primeiros.”

Vasco Cardoso, membro da Comissão Política do CC do PCP

 

No capítulo final deste seu livrinho [Salário, Preço e Lucro] ‘A luta entre o Capital e o Trabalho’, Karl Marx diz-nos a certa altura: ‘tendo demonstrado que um aumento geral de salários resultaria numa diminuição da taxa geral de lucros, sem afectar porém os preços médios das mercadorias, nem os seus valores.’”

Guilherme da Fonseca-Statter, sociólogo

 

Uma das mais violentas ofensivas que enfrentamos hoje nos locais de trabalho é ao tempo de trabalho e à sua organização. Não é nova. A ânsia do patronato pelo poder completo e total sobre o tempo de trabalho, e a procura de mecanismos que lhes garantam mais riqueza com menos custos, leva à busca de mais refinados processos de exploração.”

Ana Pires, dirigente da CGTP-IN

 

No actual surto inflacionista, o argumento mais utilizado é o da disrupção das cadeias de abastecimento internacionais, na sequência da pandemia de COVID, acrescidos depois dos impactos sobre os preços dos bens alimentares e energéticos decorrentes também da guerra na Ucrânia. Contudo, se formos antes da COVID e da guerra, sectorialmente podíamos já encontrar as mesmas pressões inflacionistas.”

Pedro Carvalho, economista

 

O objectivo político fundamental que se pretende alcançar com o controlo de preços consiste exatamente em comprimir os lucros, especialmente actuando nos sectores em que estes se mostram mais especulativos e extravagantes, e atenuar a perda de poder de compra real dos trabalhadores, especialmente atuando ao nível dos produtos mais importantes para a estrutura de despesas das famílias.”

Alexandre Abreu, economista e professor universitário

 

Os baixos salários, ou dizendo de outra forma, o nível de exploração no nosso país é hoje um factor que limita o desenvolvimento, que perpetua a produção de baixo valor, que desincentiva a formação, que condiciona a garantia de direitos sociais essenciais como a saúde, a educação, a segurança social (…), entre tantas outras conquistadas com a Revolução de Abril.”

Tiago Cunha, economista

Confirma-se, portanto, a tese de Marx: esteja a inflação em queda ou em ascensão, o patrão não quer abdicar das elevadas taxas de lucro para seu proveito exclusivo e, por isso, impõe que sejam sacrificados os trabalhadores, seja na diminuição real dos salários, seja pela redução do emprego, seja pelo abaixamento das condições de trabalho.”

Armando Farias, ex-dirigente sindical

 

Porque descem os salários? Nós estamos perante um conflito distributivo e as políticas que estão a ser adoptadas têm um profundo viés contra o trabalho. É uma luta que está a ser ganha em grande medida pelo capital. (…) Se vamos medir o peso dos salários no PIB, verificamos que desde 1999 o PIB cresce muito mais do que os salários.”

Paulo Coimbra, economista e professor universitário

 

Embora em 2020 os trabalhadores por conta de outrem representassem 85,6% da população empregada no nosso país, e os ‘empregadores’ apenas 3,2%, mesmo assim uma parcela significativa da riqueza criada reverte para estes. Segundo o INE, apenas 37,9% da riqueza criada naquele ano (PIB) reverteu para os trabalhadores sob a forma de ‘ordenados e salários’, enquanto 39,1% reverteu a favor do capital (…).”

Deolinda Machado, dirigente da Liga Operária Católica/ Movimento de Trabalhadores Cristãos.