Resgatar a soberania é condição de desenvolvimento

«O País pre­cisa de uma po­lí­tica de de­sen­vol­vi­mento que pre­serve e tenha como ponto de par­tida a sua so­be­rania. Um ca­minho que exige também a re­cu­pe­ração cui­dada, mas ne­ces­sária, de ins­tru­mentos como a so­be­rania mo­ne­tária e or­ça­mental», afirmou o Se­cre­tário-geral do PCP na sessão pú­blica «Do pe­lotão da frente à cauda da Eu­ropa: mitos e re­a­li­dades – So­lu­ções para um Por­tugal com fu­turo», re­a­li­zada an­te­ontem, 14, em Lisboa.

O País não é pobre, o País tem sido, isso sim, em­po­bre­cido

Paulo Rai­mundo fa­lava no en­cer­ra­mento da sessão que contou com um vasto e qua­li­fi­cado painel de ora­dores: os eco­no­mistas Ca­ta­rina Mo­rais, Eu­génio Rosa, José Carlos Graça, Josué Cal­deira e Ri­cardo Paes Ma­mede; a so­ció­loga Ana Drago; o his­to­ri­ador Ma­nuel Loff, ac­tu­al­mente também de­pu­tado na As­sem­bleia da Re­pú­blica; Luís Ca­ra­pinha, da Secção In­ter­na­ci­onal do PCP; Sandra Pe­reira, de­pu­tada no Par­la­mento Eu­ropeu; Agos­tinho Lopes, res­pon­sável pela Co­missão de Ac­ti­vi­dades Eco­nó­micas do Par­tido; João Fer­reira e Vasco Car­doso, da Co­missão Po­lí­tica.

Cada um à sua ma­neira, par­tindo de ân­gulos de aná­lise di­versos, des­mon­taram uma a uma as mis­ti­fi­ca­ções em que as­sentou e as­senta o pro­cesso de in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ropeu e o po­si­ci­o­na­mento que nele as­sume Por­tugal. Da «Eu­ropa con­nosco» ao «pe­lotão da frente», foram muitas as pro­messas, am­pla­mente pro­pa­gan­de­adas, mas bem es­cassas as van­ta­gens: desde que in­te­grou a então CEE e, so­bre­tudo, desde que aderiu à moeda única, a eco­nomia por­tu­guesa es­tagnou, o in­ves­ti­mento caiu a pique, o de­sem­prego tornou-se en­dé­mico e a pre­ca­ri­e­dade ge­ne­ra­li­zada, im­por­tantes em­presas pú­blicas foram pri­va­ti­zadas, fra­gi­li­zadas, en­cer­radas. Evi­dente tem sido, notou-se, a con­ver­gência de in­te­resses entre o grande ca­pital que do­mina cada vez mais par­celas da eco­nomia na­ci­onal e o pro­cesso de in­te­gração ca­pi­ta­lista, do qual é o prin­cipal – e mesmo único – be­ne­fi­ciário.

Por­tugal é hoje, a vá­rios ní­veis, um País mais de­pen­dente, menos so­be­rano e de­mo­crá­tico. Re­su­mindo, o País está «na cauda da Eu­ropa» e «pe­lo­tões da frente» só se forem os dos baixos sa­lá­rios, da po­breza ou das de­si­gual­dades (ver caixa).

Pese em­bora a des­con­for­mi­dade evi­dente com as pro­messas e de­cla­ra­ções so­lenes sobre as «ma­ra­vi­lhas» da União Eu­ro­peia e do euro, nada disto sur­pre­ende – pelo menos não quem desde sempre com­pre­endeu e de­nun­ciou a na­tu­reza deste pro­cesso de in­te­gração, que não é neutro (como aliás ne­nhum é): en­gen­drado pelos mo­no­pó­lios e pelas grandes po­tên­cias eu­ro­peias, em par­ti­cular a Ale­manha, ele não tem – nunca teve – a «de­mo­cracia», os «di­reitos» ou a «so­be­rania» como ob­jec­tivos ou eixos nor­te­a­dores.

Os seus pi­lares são ou­tros – o ne­o­li­be­ra­lismo, o fe­de­ra­lismo, o mi­li­ta­rismo. Daí as pres­sões para pri­va­tizar, para pre­ca­rizar, para es­magar sa­lá­rios e pen­sões, para fra­gi­lizar di­reitos sin­di­cais, para trans­ferir para o es­tran­geiro re­cursos e ri­quezas, para afastar cada vez mais os tra­ba­lha­dores e os povos dos pro­cessos de­ci­só­rios que lhes dizem res­peito.

As evi­dên­cias e o tigre de papel
Na­quela sessão não se pro­curou res­postas sim­ples e únicas para o com­plexo pro­blema do atraso eco­nó­mico do País. Mas também não se deixou de apontar evi­dên­cias que ou­tros tentam es­conder: o euro trouxe es­tag­nação eco­nó­mica e re­tro­cesso so­cial, todos os dados o com­provam. E era evi­dente que assim seria, pois sendo uma moeda única (como únicos são também o mer­cado, as re­gras e as po­lí­ticas) acaba por tratar de forma igual o que é di­fe­rente, sendo também di­fe­rentes os efeitos em cada um dos con­textos na­ci­o­nais. Dito de outra forma, se o euro se ajusta à re­a­li­dade da Ale­manha não o pode fazer à de Por­tugal e o forte, como sempre, é quem ganha…

Muito abor­dado foi o caso da Ro­ménia, o mais re­cente «tigre» cuja vi­ta­li­dade eco­nó­mica, ga­rantem-nos, o co­loca mesmo à beira de ul­tra­passar Por­tugal. Ou talvez não e es­te­jamos pe­rante «ha­bi­li­dades es­ta­tís­ticas» e o mero agitar de um es­pan­talho para ace­lerar as «re­formas» que possam evitar essa hu­mi­lhante ul­tra­pas­sagem. Por «re­formas», é sa­bido, en­tende-se mais pri­va­ti­za­ções, mais li­be­ra­li­za­ções, mais pre­ca­ri­e­dade, mais de­sem­prego, menos in­ves­ti­mento, menos im­postos para o ca­pital.

Ainda sobre a Ro­ménia, não deixa de ser cu­rioso que o seu tão lou­vado de­sem­penho as­sente numa drás­tica di­mi­nuição da po­pu­lação, em sa­lá­rios baixos ou na cres­cente de­pen­dência face ao ex­te­rior. A seu favor tem uma moeda pró­pria e uma po­pu­lação com ele­vados ín­dices de es­co­la­ri­dade.

Que fazer?
Feito o di­ag­nós­tico, passou-se ao re­médio, com quase todos os ora­dores a apon­tarem ca­mi­nhos al­ter­na­tivos para o País. Sis­te­ma­ti­zando-os, o Se­cre­tário-geral do PCP apontou à rup­tura com o ne­o­li­be­ra­lismo e com a sub­missão face ao ex­te­rior, o que im­plica a re­cu­pe­ração de ins­tru­mentos de so­be­rania.

Ora, ga­rantiu, nada disto sig­ni­fica um País mais fe­chado, antes pelo con­trário». Fe­chado, re­alçou, é um País que «afu­nila as re­la­ções ex­ternas com as prin­ci­pais po­tên­cias da UE e delas se torna de­pen­dente», que «opta por não am­pliar e di­ver­si­ficar essas mesmas re­la­ções e não pro­move uma po­lí­tica de co­o­pe­ração mu­tu­a­mente van­ta­josa em di­fe­rentes la­ti­tudes».

Um forte in­ves­ti­mento pú­blico, nunca abaixo dos 5% do PIB; a re­dução do en­di­vi­da­mento ex­terno, não pela com­pressão da des­pesa pú­blica e em­po­bre­ci­mento, mas por via do cres­ci­mento; o apro­vei­ta­mento de pos­si­bi­li­dades dentro dos con­di­ci­o­na­mentos do Mer­cado Único e do euro; a uti­li­zação dos re­cursos do País; a va­lo­ri­zação dos sa­lá­rios; a in­ter­rupção das pri­va­ti­za­ções e li­be­ra­li­za­ções e a re­cu­pe­ração do con­trolo pú­blico de em­presas e sec­tores es­tra­té­gicos; o com­bate à es­pe­cu­lação dos preços – são eixos deste rumo al­ter­na­tivo que o PCP propõe e pelo qual muitos ou­tros, para além dos co­mu­nistas, estão dis­postos a lutar, ga­rantiu Paulo Rai­mundo.

A cons­trução deste País de­sen­vol­vido e so­be­rano, con­cluiu-se na sessão, faz-se em opo­sição frontal ao pro­cesso de in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ropeu e exige a sua der­rota. A Eu­ropa dos tra­ba­lha­dores e dos povos, de co­o­pe­ração entre Es­tados so­be­ranos e iguais, sur­girá da con­ver­gência das lutas tra­vadas nos vá­rios países. E tantas e tão po­de­rosas têm sido...


No pe­lotão, mas de trás

  • Entre 2020 e 2022, o PIB per ca­pita de Por­tugal desceu de 85% para 78% da média dos países da UE a 27, pas­sando do 15.º para o 19.º lugar

  • O peso dos sa­lá­rios no PIB caiu, no mesmo pe­ríodo, sete pontos per­cen­tuais, des­cendo para a 13.ª po­sição, num quadro em que a mai­oria dos países da UE também viu o ca­pital re­forçar o seu peso na re­par­tição da ri­queza

  • A po­breza au­mentou entre o con­junto da po­pu­lação e também entre os tra­ba­lha­dores entre 2019 e 2021. Os 10% mais ricos pas­saram a ga­nhar 8,5 vezes mais do que os 10% mais po­bres

  • Em Por­tugal, 52% dos tra­ba­lha­dores re­cebem no má­ximo 800 euros brutos e 69% até 1000 euros brutos

  • Mais de três quartos do em­prego criado em 2022 foi pre­cário. Por­tugal é o ter­ceiro país com mais pre­ca­ri­e­dade

  • Perto de um mi­lhão e 800 mil tra­ba­lha­dores por conta de ou­trem tra­ba­lham por turnos, à noite, aos sá­bados, do­mingos ou numa com­bi­nação desses ho­rá­rios, cor­res­pon­dendo a 44%


«(…) nesse pe­ríodo de tempo, as duas pri­meiras dé­cadas do sé­culo, a eco­nomia por­tu­guesa é de­fi­ni­tiva e es­tru­tu­ral­mente mar­cada pela adesão ao euro e tudo o que a per­tença à Zona Euro ar­rastou, no­me­a­da­mente em termos de gestão or­ça­mental e in­ves­ti­mento pú­blico.»
Agos­tinho Lopes, res­pon­sável pela Co­missão para os As­suntos Eco­nó­micos do PCP

«Cada Es­tado-Membro onde os tra­ba­lha­dores perdem força e vêem de­gra­dada a sua si­tu­ação, por via da apli­cação do re­cei­tuário ne­o­li­beral da UE, acres­centa pressão sobre os tra­ba­lha­dores dos de­mais Es­tados-Mem­bros para a apli­cação do mesmo re­cei­tuário.»
Sandra Pe­reira, de­pu­tada do PCP no Par­la­mento Eu­ropeu

«A adesão à UE não trouxe nem maior cres­ci­mento eco­nó­mico para Por­tugal nem uma me­lhor re­par­tição da ri­queza criada. (…) A par­cela da ri­queza, em per­cen­tagem do PIB, que os tra­ba­lha­dores re­ce­beram sob forma de sa­lário foi, em 1973, de 49,5%; em 1975, de 72%; e em 1985, ano an­te­rior à en­trada na CEE, de 37,6%. Em 2021 foi de 37,3%.»
Eu­génio Rosa, eco­no­mista

«A es­tra­tégia de de­sen­vol­vi­mento que é mon­tada [com a troika] é esta: va­lo­rizar os ac­tivos que existem, no­me­a­da­mente o pa­tri­mónio ha­bi­ta­ci­onal, e des­va­lo­rizar o tra­balho. (…) Criámos novo em­prego, de­pois da crise, em 2019, nos sec­tores mais mal pagos [tu­rismo, agri­cul­tura].»
Ana Drago, so­ció­loga

«Sa­bemos que nos anos 1976-86, no caso por­tu­guês a in­te­gração nas co­mu­ni­dades eu­ro­peias foi sempre en­ca­rada como um an­tí­doto contra a Re­vo­lução. Em nome dela de­ve­riam ser re­vo­gados as­pectos cen­trais da agenda sócio-eco­nó­mica da Cons­ti­tuição [re­forma agrária, na­ci­o­na­li­za­ções, con­trolo ope­rário].»
Ma­nuel Loff, his­to­ri­ador e de­pu­tado na As­sem­bleia da Re­pú­blica

«O elo­giado mo­delo de “tigre eco­nó­mico” da Ro­ménia as­senta em sa­lá­rios muito baixos, na pro­xi­mi­dade ge­o­grá­fica com o mer­cado alemão, prin­cipal des­tino das ex­por­ta­ções (e im­por­ta­ções) ro­menas, e na de­pen­dência da pro­cura ex­terna. (…) O sa­lário médio é dos mais baixos da UE e a pro­porção de tra­ba­lha­dores po­bres a mais alta.»
Luís Ca­ra­pinha, membro da Secção In­ter­na­ci­onal do PCP

«A ex­pansão a Leste das re­la­ções ca­pi­ta­listas de pro­dução, ao ser­viço dos mo­no­pó­lios eu­ro­peus e apoiada pelo poder de Es­tado das grandes po­tên­cias eu­ro­peias, abriu portas a um dos mais es­tru­tu­rais pro­cessos de afir­mação e so­bre­vi­vência do ca­pi­ta­lismo ao longo da sua his­tória, com a cri­ação de novos es­paços de acu­mu­lação.»
Josué Cal­deira, eco­no­mista

«Con­tra­ri­a­mente às ideias que nos ven­deram nos anos 80 e 90 do sé­culo pas­sado sobre o “pe­lotão da frente” da Co­mu­ni­dade Eu­ro­peia, a con­ver­gência dos sa­lá­rios e a co­esão eco­nó­mica e so­cial, Por­tugal está cada vez mais longe dessa re­a­li­dade, tendo ha­vido antes um agra­va­mento pro­gres­sivo e con­tínuo da si­tu­ação (…)»
Ca­ta­rina Mo­rais, eco­no­mista

«A ver­dade é que andam há muito tempo a tentar con­vencer-nos de que a me­lhor forma de cres­cermos é termos menos: termos menos di­reitos la­bo­rais, menos apoios so­ciais, menos e pi­ores ser­viços pú­blicos, menos dis­tri­buição dos ren­di­mentos.»
Ri­cardo Paes Ma­mede, eco­no­mista e pro­fessor uni­ver­si­tário

«As ca­pa­ci­dades cul­tu­rais de fundo dos ci­da­dãos eram, mesmo na ex­pe­ri­ência po­lí­tica li­mi­tada que foi o cha­mado “so­ci­a­lismo real” (…), muito mai­ores do que em países oci­den­tais de ní­veis pró­ximos de de­sen­vol­vi­mento. Pos­te­ri­or­mente à cha­mada “tran­sição para o mer­cado”, essas ca­pa­ci­dades foram lar­ga­mente le­sadas.»
João Carlos Graça, eco­no­mista e pro­fessor uni­ver­si­tário

«O euro de­bi­lita a pro­dução na­ci­onal. In­cen­tiva os baixos sa­lá­rios, de­sin­cen­tiva a mo­der­ni­zação da eco­nomia e a qua­li­fi­cação da mão-de-obra. En­ca­rece as nossas ex­por­ta­ções. Em vez de ajudar a subs­ti­tuir im­por­ta­ções por pro­du­ções na­ci­o­nais, ajuda a subs­ti­tuir pro­du­ções na­ci­o­nais por im­por­ta­ções.»
João Fer­reira, membro da Co­missão Po­lí­tica

«O quadro de ins­ta­bi­li­dade e in­cer­teza quanto à evo­lução da si­tu­ação in­ter­na­ci­onal dá ainda mais força à ba­talha que temos vindo a travar de de­fesa da pro­dução na­ci­onal. Não em abs­trato, mas indo àquilo que são áreas crí­ticas de de­pen­dência do País: ali­mentos, me­di­ca­mentos, meios de trans­porte, energia…»
Vasco Car­doso, membro da Co­missão Po­lí­tica