Para não trabalhar até morrer: mobilizações em França, luta que continua em Portugal

Luís Capucha Pereira

O aumento da idade de reforma é um ataque a este direito e conquista dos trabalhadores

No passado dia 19 de Janeiro, mais de 2 milhões de trabalhadores encheram as ruas de diversas cidades de França (foram 400 000 em Paris), numa acção organizada por um conjunto alargado de sindicatos – incluindo a CGT –, dando a resposta inicial a uma proposta de lei apresentada pelo governo de Emmanuel Macron, representante dos interesses do grande capital, que pretende, até 2030, aumentar a idade de reforma dos 62 para os 64 anos. Uma nova mobilização, a 31 de janeiro, colocou 2,8 milhões de trabalhadores em manifestação e a perspectiva é a de intensificar as formas de luta contra esta proposta de lei.

O aumento da idade de reforma – pretensamente justificado pelo aumento da esperança de vida e pela necessidade de garantir a sustentabilidade financeira dos sistemas de segurança social – é um ataque a este direito e conquista dos trabalhadores há muito em curso nos estados-membros da União Europeia (UE). Catapultado após as Conclusões do Conselho Europeu de Março de 2002, que estabeleceram como objectivo «um aumento gradual de cerca de 5 anos na idade média efectiva em que as pessoas deixam de trabalhar» na UE até 2010. Objectivo incentivado mais recentemente através do conceito de «envelhecimento activo», que confunde deliberadamente as políticas públicas conducentes a um envelhecimento com qualidade e participação social com o prolongamento da actividade profissional.

Este processo insere-se numa mais vasta ofensiva neoliberal, que envolve a total desregulamentação do trabalho e a privatização dos serviços públicos, incluindo dos Sistemas Públicos de Segurança Social, deslocando os recursos gerados pelas contribuições dos trabalhadores para o sistema financeiro privado (criando ou recriando fundos de base profissional ou deslocando-os para os chamados planos poupança reforma – PPR).

A este respeito, é relevante recordar a promoção, no quadro da UE, de um plano europeu de pensões pessoais, assente na teorização da dita insustentabilidade dos sistemas públicos de pensões e na dita inevitável substituição dos sistemas redistributivos por sistemas de capitalização, que estava a ser cozinhado de forma «pouco transparente» entre a Comissão Europeia e a gigante financeira BlackRock e a ser disseminado através das «recomendações específicas por país», no âmbito do Semestre Europeu. Este plano foi denunciado pelos deputados do PCP no Parlamento Europeu, em Setembro de 2018, o que contribuiu para o debate que então teve lugar sobre a relação intrínseca entre as instâncias da UE e os interesses do grande capital.

Parafraseando o primeiro-ministro português, que rubricou as conclusões do Conselho Europeu de Barcelona, em 2002, «é fazer as contas» – quanto mais «activo» for o envelhecimento dos trabalhadores, maior o período em que eles contribuem para os lucros dos privados, que serão tão magnificados quanto mais privatizado for o sistema! Simples assim.

Com 62 anos, a França está no grupo de países na UE onde a idade de reforma é mais baixa. Em Portugal – cujo cálculo da idade de reforma acompanha a variação da esperança média de vida aos 65 anos – essa idade é, em 2023, de 66 anos e 4 meses (desceu 3 meses, em decorrência da mortalidade causada pela pandemia), sendo um dos países na UE onde esse valor é mais elevado (só superado pela Grécia, a Dinamarca e a Itália, com 67 anos).

A utilização do aumento da esperança média de vida à nascença para justificar o aumento da idade de reforma é uma dupla falácia: porque a suposta insustentabilidade da Segurança Social não reside no aumento do tempo de vida dos beneficiários, mas na complacência com a fraude e a evasão de contribuições, no aumento das dívidas das empresas ao sistema, pela má utilização dos recursos públicos em favor dos privados e pelos baixos salários, pela desregulamentação e precarização do trabalho; e porque o aumento do tempo de vida não significa necessariamente que nesse período alargado a qualidade de vida se mantenha.

Sobre este último ponto é importante relevar o indicador que refere que, em média, os portugueses têm 59,7 anos de vida em boas condições de saúde, sem necessidade de intervenção médica sistemática (os franceses têm 64,6, os italianos 68, os gregos 65,9 e os dinamarqueses 58). Ou seja, de uma forma geral, podemos dizer que a idade de reforma, como está estabelecida, garante mais lucros ao capital, mas não permite aos trabalhadores o usufruto útil do tempo da reforma, com qualidade de vida e capacidade física e psíquica para a realização das atividades lúdicas, formativas, familiares ou comunitárias que melhor lhes aprouver.

O celebrável aumento da esperança média de vida tem sido acompanhado de um aumento muito significativo da produtividade social do trabalho humano, fruto do desenvolvimento científico e tecnológico e do correspondente desenvolvimento das forças produtivas. Se os ganhos de produtividade revertessem a favor do trabalho, em vez do capital, seria possível não apenas reduzir o tempo semanal de trabalho, mas fazê-lo sem prolongar o tempo global de actividade profissional.

Não sei se, entre os milhões de trabalhadores que se têm mobilizado em França contra o aumento da idade de reforma, alguém recordou a frase pronunciada pelo comunista Ambroise Croizat quando, em 1945, como ministro do Trabalho, foi criado o sistema público de segurança social no país: «A reforma não deve ser a antecâmara da morte, mas uma nova etapa da vida.» Um princípio a ter sempre presente, que contribui para conduzir a história num sentido de progresso e de emancipação dos trabalhadores.

São os serviços nacionais de Segurança Social, universais e solidários – enquanto instrumentos insubstituíveis de promoção de justiça social na distribuição do rendimento, consolidados através do reforço dos sistemas públicos, com um financiamento contributivo, baseado em princípios de solidariedade entre gerações e numa lógica redistributiva, integrados numa política de combate ao desemprego e à precariedade, de criação de emprego com direitos, de uma efectiva valorização dos salários e do combate à evasão contributiva –, que garantirão uma reforma numa idade adequada, com rendimentos justos e tempo para viver com qualidade. É a luta dos trabalhadores, em França nos últimos dias como em Portugal em tantos outros momentos, que os podem defender e aprofundar.