Entrevista a Paulo Raimundo, Secretário-geral do PCP

«No que é decisivo, o PS está alinhado com PSD, CDS, Chega e IL»

Paulo Raimundo foi eleito há três meses Secretário-geral do PCP e já nessa qualidade percorreu o País, em dezenas de iniciativas, visitas e contactos. Na sua primeira entrevista ao Avante! fala das injustiças e desigualdades que marcam o nosso País, da luta que se desenvolve em diversas frentes e da alternativa que se impõe e que necessita, para ser concretizada, de um Partido mais forte e ligado às massas.

O que marca a realidade são as dificuldades crescentes para fazer face ao aumento do custo de vida

A Conferência Nacional centrou-se na resposta às «novas exigências», e logo a seguir o Partido lançou uma campanha de combate às injustiças. Que diz isto sobre a análise que o Partido faz da realidade nacional?

Primeiro, se me permites, queria felicitar o Avante! por mais um aniversário e o seu papel único e de sempre.

Indo à tua pergunta, o que marca a realidade, o dia a dia dos trabalhadores, dos reformados, das populações, são as dificuldades crescentes para fazer face ao aumento do custo de vida. Uma situação que resulta desde logo do aumento brutal dos preços, em particular dos bens essenciais, mas que nos leva sempre, sempre, aos dois elementos centrais: salários e distribuição da riqueza.

Ora, ao que assistimos é os salários – e podemos acrescentar as reformas e pensões – sob uma pressão enorme, com cortes reais, ao mesmo tempo que os lucros dos grupos económicos assumem resultados nunca vistos. Ora, isto não pode continuar.

 

O que temos assistido é a um agravamento dos problemas e à recusa do Governo em lhes dar resposta. Que propostas tem o Partido para inverter esta situação?

O problema que enfrentamos e, talvez, o mais complexo no plano político, é que o Governo não dá resposta e opta por não dar resposta. O Governo do PS não descola da política de direita, em tudo o que serve o grande capital lá está o PS alinhado com PSD, CDS, Chega e IL. Há, entre outras, duas matérias em que esta unidade é evidente: quando se trata de taxar efectivamente os lucros dos grandes grupos económicos ou de valorizar direitos e salários, aí estão eles.

E estas são precisamente duas questões centrais, às quais se pode juntar a defesa do Serviço Nacional de Saúde, a que urge dar resposta. Desde logo fixar preços dos bens essenciais e aumentar salários e pensões, mas também medidas concretas que travem a especulação dos preços, nomeadamente os aumentos das rendas e dos custos com os créditos à habitação. Ora, estas medidas exigem uma outra opção, a taxação extraordinária dos lucros dos grupos económicos e medidas que travem a especulação.

É a cada dia que passa mais evidente que o Governo e que a maioria absoluta do PS optaram e optam por não responder aos reais problemas, seguindo o trilho de PSD, CDS, Chega e IL.

 

Como vês a tentativa de justificar o agravamento das condições de vida com a guerra?

Se a nossa entrevista tivesse sido há dois anos, a tua pergunta seria a mesma, mas com a «epidemia», se tivesse sido há oito, seria a crise financeira, e por aí fora... A guerra é o pretexto de turno. Não é possível negar que a guerra e as sanções, e o aproveitamento que delas se faz, têm consequências também no plano económico, mas não são desculpa para tudo.

Há dias, o primeiro-ministro afirmava que a situação estava sobre rodas e depois veio a guerra e foi preciso apertar o cinto. Esqueceu-se o primeiro-ministro que foi no período da guerra, o tal período de aperto, que as 13 empresas cotadas na bolsa concentraram lucros como nunca vistos, mais de quatro mil milhões de euros só nos primeiros nove meses de 2022.

Isto não é um problema da guerra, mas sim da opção do Governo de criar condições para que os grupos económicos se fortaleçam às custas da maioria dos trabalhadores e do nosso povo.

 

A TAP e os casos e decisões que a têm envolvido servem de pretexto não só para justificar a sua privatização mas para dar fôlego à campanha contra o que é público. Como enfrentar esta operação?

A TAP é uma empresa muito apetecível. É a maior exportadora nacional, é uma empresa estratégica, com meios e trabalhadores altamente qualificados. Há 20 anos que andam a definir estratégias com o objectivo de concretizar esse crime económico que é a privatização, com consequências como a que agora se vê com o negócio da compra de aviões.

Embora pública, a TAP é gerida a partir de critérios e práticas da gestão privada e é esse tipo de gestão que permite as indemnizações escandalosas ou os bónus milionários, para lá de outras opções opostas às que deveria ter uma gestão pública.

Estamos perante uma ofensiva que começa sempre por denegrir as empresas e serviços públicos, depois por apresentá-los como sugadores do dinheiro público e, por fim, fazer passar a ideia de que é preciso vender e, no limite, que se ofereça. É o que está em curso na TAP e que se está a construir para atacar o SNS, com linhas de mistificação ideológicas de comparação entre o privado e o público.

 

Que comentário fazes às afirmações do primeiro-ministro de que os portugueses ganharam poder de compra ou de regozijo sobre a evolução de indicadores económicos como os da inflação ou PIB?

Não sei se o primeiro-ministro vive noutra realidade ou se quer iludir a realidade. Nenhuma das opções é positiva.

Tirando os 5% dos portugueses que detêm nas suas mãos os 42% de toda a riqueza criada no País, e mais uns poucos, a generalidade dos trabalhadores e pensionistas não só não viu o poder de compra aumentar, como sentiu a sua perda real. Muito menos sentiu qualquer efeito dos resultados positivos no plano económico apresentados pelo primeiro-ministro.

 

Os aumentos das taxas de juro decretados pelo BCE estão a criar uma situação insuportável para centenas de milhares de famílias. A quem servem? Que medidas se impõe tomar?

O País está privado do instrumento que permite enfrentar estes problemas, a nossa soberania monetária. E esta é uma questão central. Os governos assobiam para o ar como se nada tivessem a ver com a suposta independência do BCE, uma independência que pende sempre para os interesses dos grupos económicos.

Ora, não é possível enfrentar a situação que está colocada a milhares de pessoas com os empréstimos para a habitação sem pôr os lucros dos bancos a pagar a subida das taxas de juro. A banca privada teve, no passado ano, 4,4 milhões de euros de lucros por dia. Assumirem o primeiro impacto da subida das taxas de juro é, no mínimo, o que se pode exigir. Ainda ontem levámos mais uma vez este problema à Assembleia da República.

 

Como se combate simultaneamente a política de direita do Governo e os projectos reaccionários do PSD, CDS, Chega e IL, que visam aprofundá-la?

A questão que se coloca neste momento não é escolher entre que ritmos e formas se concretiza a política de direita. A questão central é romper com essa política. Podemos pôr a coisa noutro plano: o que se coloca aos trabalhadores, ao povo, a todos os democratas e patriotas, a todos quantos aspiram a uma vida melhor não é optar pela continuidade na alternância, mas a de construir a alternativa.

O que se exige é a ruptura com a política de direita e a construção da alternativa que coloque no centro da sua acção os trabalhadores e o povo, os seus direitos e anseios: a alternativa patriótica e de esquerda. Esta é a única forma de responder aos problemas que enfrentamos, de responder aos défices estruturais do País e de abrir um novo rumo no plano social, económico, político, cultural, um rumo de soberania e independência.

É resolvendo os problemas com que amplas massas se confrontam que se retira espaço político às expressões e projectos reaccionários, projectos que fomentam a política de direita e que simultaneamente se procuram aproveitar da justa indignação resultante dessa mesma política.

 

Como vês o processo de revisão Constitucional a que o PS deu o seu aval?

Estamos perante um processo desnecessário, injustificável e perigoso. O processo foi aberto, o PS podia ter arrumado com a coisa logo de início, mas não... Não só não terminou, como lhe deu alento, foi a jogo.

Sabemos bem como funciona: primeiro há um pretexto e depois é o que se sabe. Só haverá alteração à Constituição se o PS quiser. Não estejam já a ensaiar a manobra de, perante as propostas que aí estão, nomeadamente dos partidos mais reaccionários, que o saldo final até nem será negativo… Ainda vão pedir para agradecermos ao PS e ao PSD por estes não terem alinhado com todas as caneladas propostas pelo Chega ou IL.

Nós temos as nossas propostas, iremos para a batalha, mas a questão central que se coloca é a de traduzir na vida de todos os dias, a de pôr em prática na vida dos trabalhadores e do nosso povo, o texto constitucional que está em vigor. É esse o desafio de todos os defensores da Constituição e de Abril.

 

A ofensiva é grande, mas a resistência aí está

A situação internacional apresenta desenvolvimentos preocupantes e tem ocupado a agenda política e mediática. Que análise faz o PCP desta realidade?

Mais do que a situação internacional ocupar a agenda mediática, o que há é uma campanha mediática que apresenta a versão que encaixa, no fundamental, nos objectivos hegemónicos dos EUA e nos interesses dos seus grupos económicos.

A ofensiva é grande, o ataque aos que resistem ao imperialismo e aos seus objectivos é muito forte e assume formas muito diversificadas. Aí está a escalada de guerra, com os perigos que encerra, e a brutal exploração e injustiça na distribuição da riqueza.

Mas também é verdade que os trabalhadores e os povos continuam a resistir e a lutar, incluindo com grandes acções de massas, que têm lugar também na Europa, contra o aumento do custo de vida e a ofensiva social e económica dos governos que, com esta ou aquela diferença, estão comprometidos com os objectivos do capital. Estas grandes e pequenas lutas, incluindo pela paz e pelo fim da guerra, não têm expressão mediática, mas existem, estão aí e estão a crescer, o que revela também as potencialidades que estão colocadas.

A análise que fizemos no XXI Congresso está profundamente actual e a tese de que grandes perigos convivem com grandes potencialidades, aí está, em toda a sua dimensão.

 

A luta e o seu alargamento garantirão respostas aos problemas

No plano da luta de massas, achas que estamos a ter o desenvolvimento que a situação exigiria? Como poderemos estimulá-la ainda mais?

Está em curso um profundo e amplo movimento de luta, desde logo dos trabalhadores. Uma luta pela exigência de aumento de salários, contra a precariedade e o aumento do custo de vida, uma luta que muitas vezes passa ao lado da generalidade da comunicação social, não é o caso do Avante!, mas que existe e se está a alargar.

Teve esse extraordinário momento de convergência na passada quinta-feira, no Dia de Indignação, Protesto e Luta convocado pela CGTP.

Mas há outras expressões de luta de grande significado. É o caso dos professores, dos trabalhadores não docentes, dos enfermeiros, dos médicos, dos trabalhadores da cultura e dos profissionais das forças de segurança, mas também dos reformados, agricultores, utentes do SNS, juventude, entre outras, expressões diversas contra o aumento do custo de vida, pelo direito à habitação ou pela paz.

Há que continuar a animar esse justo processo de resistência e exigência. A situação assim o impõe e é esse processo, e o seu alargamento, que garantirá respostas aos problemas.

 

Costumamos dizer que o Partido tem um programa político alternativo «que urge afirmar» e que é um instrumento de luta e mobilização de todos os que aspiram a uma vida melhor. Que tens a dizer sobre isso?

O Partido que somos e que queremos continuar a ser é o que é pelo projecto e objectivos que assume. É, também, como disseste, um instrumento de mobilização que corresponde aos interesses e anseios dos trabalhadores e do povo, que corresponde aos interesses da esmagadora maioria da população.

Olhando para as injustiças que marcam a sociedade, olhando para este contraste entre a apropriação pelo capital da riqueza criada pelos trabalhadores e as crescentes dificuldades que estes sentem nas suas condições de vida, torna-se muito evidente a natureza exploradora do sistema capitalista. A luta por objectivos concretos é de grande importância, mas não perdemos de vista que a solução plena dos problemas é inseparável da denúncia e da luta contra o capitalismo e da sua superação revolucionária, da construção do socialismo e do comunismo.

Uma construção de todos os dias, por uma democracia política, económica, social e cultural, tal como aponta o Programa do Partido Uma democracia avançada, os valores de Abril no futuro de Portugal.

O problema é a tomada de consciência disso por parte dos interessados no projecto e ideal do Partido, tendo em conta a brutal ofensiva ideológica a partir dos instrumentos do capital. É evidente que o nosso projecto não serve ao capital e daí o combate feroz que nos faz... Mas quando os trabalhadores lutam por melhores salários ou contra a precariedade estão a lutar também pelo projecto que defendemos. É assim também na luta dos utentes em defesa do SNS ou da Escola Pública, entre outras.

O que temos de continuar a fazer, e cada vez mais, é estar profundamente ligados aos trabalhadores e a amplas camadas da população. Organizá-los, dar-lhes ânimo e contribuir para a sua luta em torno dos seus direitos e anseios, porque em grande medida esses elementos correspondem ao nosso projecto.

 

Mas depois há toda a barragem, o apagamento e preconceito mediáticos...

Como disse há pouco, o nosso projecto não serve os interesses do capital. Ora, se assim é, não esperemos do capital e dos seus meios nenhuma ajuda, pelo contrário. A solução é, a partir das forças e dos meios que temos, concretizar esse objectivo.

Por vezes parece que é impossível, mas a realidade revela que não é assim. Ir para a rua, potenciar os meios que temos e, acima de tudo, contactar e esclarecer de rosto erguido, porque só nós o podemos fazer, pois temos a razão do nosso lado.

 

Tens falado muito da convergência e da unidade para construir a alternativa patriótica e de esquerda. Incluis o PS nessa convergência?

Se há coisa que a realidade tem todos os dias demonstrado é que o PS não descola da sua opção de levar por diante a política de direita, nesse carril onde caminha juntamente com PSD, CDS, Chega e IL. É essa a natureza do PS. Ora, o que a vida mostra é a necessidade e urgência de romper com este caminho imposto ora pela mão do PS ora pelo PSD. E isso não se faz escolhendo entre os que, no fundamental, partilham dos mesmos critérios e opções.

Essa ruptura, essa alternativa, só é possível de concretizar reforçando o PCP e alargando a base social dos que vêem na política patriótica e de esquerda o caminho capaz de afirmar os direitos dos trabalhadores e do povo e a garantia que assegura o desenvolvimento soberano do País.

Para levar por diante a alternativa patriótica e de esquerda é preciso um governo que assuma essa mesma alternativa e, acima de tudo, exige-se uma ampla intervenção e construção dos trabalhadores e das massas populares.

A alternativa não é construída apenas pelos comunistas. É necessário que todos os que nela se revejam se juntem e se assumam como seus construtores. Certamente que há pessoas que, simpatizando ou sendo membros do PS ou de outros partidos, estarão disponíveis para este desafio.

 

A dada altura falou-se muito na comunicação social de um apelo que terás feito ao regresso ao PCP dos ditos «renovadores». Foi mesmo isso que disseste?

O que disse foi de forma clara e sem espaço para outras interpretações. Não incluímos nesse apelo quem, invocando essa designação, se propôs descaracterizar o Partido, abandonar a sua natureza, objectivos e ideal. Como afirmei há pouco, o Partido é o que é e assim quer continuar, este Partido que se renova e rejuvenesce todos os dias, tal como está a fazer, na acção e na luta por uma sociedade mais justa, sem exploradores nem explorados, na luta em defesa dos direitos e aspirações dos trabalhadores e do povo. É nisso que estamos concentrados e contamos com todos os que se aproximam e reaproximam, convergindo nestes objectivos.

 

«Tomar a iniciativa»

Voltando à Conferência, que efeito tiveram no reforço orgânico do Partido, e na própria sociedade, o impacto da sua realização e as conclusões que dela emanaram?

Tiveram, desde logo, como aspecto positivo o facto de o colectivo partidário as estar a apreender, identificando-as como fundamentais para elevar a capacidade do Partido em dar resposta aos desafios que se colocam.

A própria Conferência, pela forma determinada e confiante com que se desenvolveu, transmitiu ao colectivo partidário ânimo e confiança para o trabalho que precisamos de desenvolver nas várias frentes e necessidades apontadas. Podemos dizer, a partir das forças que temos, e é com essas que contamos, que há condições e vontade de tomar a iniciativa, reforçar o Partido e responder às novas exigências.

 

Desse conjunto das orientações quais estão a ter melhores resultados e emquais é possível perceber que há ainda muito caminho a fazer?

Muito caminho a fazer há em todas as linhas de trabalho definidas, mas também é justo dizer que há também muito espaço e condições para avançar. Sem querer estar a criar hierarquia das linhas de trabalho, julgo que é visível um esforço maior para o trabalho nas empresas e locais de trabalho, desde logo com a acção que está em curso Mais força aos Trabalhadores, ou a linha de trabalho Pais e crianças com direitos, onde estamos a ir mais longe.

Mas também no esforço no sentido do reforço do Partido, em particular no que diz respeito à responsabilização de mais quadros ou mesmo na linha de trabalho do recrutamento. São elementos em que estamos a avançar. Talvez que o maior desafio que temos pela frente seja a concretização em muitas frentes e organizações de um novo estilo de trabalho, que «obrigue» e leve o Partido a estar ainda mais ligado à vida e aos problemas e sobre eles actuar e intervir.

 

Assumiste há três meses o cargo de Secretário-geral do PCP. Como tens encarado esta responsabilidade tão exigente? Como tens sido recebido, no Partido e junto das pessoas?

Posso dizer que quer no plano do Partido quer no contacto mais geral com as pessoas, as coisas estão a correr bem. São três meses com muita e diversa acção e iniciativa. Encaro esta responsabilidade com grande exigência, mas também com grande tranquilidade, uma tranquilidade que advém do Partido que temos, de grande generosidade, empenhamento e militância.