A questão da sustentabilidade financeira da Segurança Social

Fernando Marques

A sustentabilidade da Segurança Social é indissociável do aumento geral dos salários e da criação de emprego

O Orçamento do Estado (OE) integra um Relatório de Sustentabilidade e o Governo constituiu mesmo, em meados do ano passado, uma Comissão para a Sustentabilidade da Segurança Social.

Os objectivos principais do Governo com a criação desta comissão são fazer uma reforma a fundo na Segurança Social, estabelecer por contratação colectiva fundos de pensões, com introdução nessas empresas de plafonamentos, onde os trabalhadores só descontam uma parte para a Segurança Social e outra parte para fundos de pensões; os fundos terão a gestão dos trabalhadores e dos patrões; haverá uma contribuição com incidência sobre o VAL, de carácter substitutivo.

A concretização destes objectivos poderá levar à substituição progressiva do actual Sistema Previdencial, que assenta na solidariedade entre gerações, para um sistema privado baseado na capitalização, onde as receitas dependem de aplicações feitas nos mercados financeiros.

A situação financeira da Segurança Social reforçou-se nos últimos anos (nomeadamente, com saldos globais positivos, prevendo-se que atinjam um valor recorde este ano), pelo que não se compreende um certo alarmismo que está ligado à noção de sustentabilidade. Por isso, este artigo procura analisar as principais dimensões da sustentabilidade.

 

1. O crescimento económico, o emprego e a evolução dos salários

 

O sistema público de Segurança Social visa, através do Sistema Previdencial, assegurar rendimentos de substituição em caso de doença, desemprego, maternidade e paternidade, invalidez, velhice ou morte, bem como no combate à pobreza e à exclusão social, cujos níveis seriam muito mais elevados sem as transferências sociais no âmbito deste sistema.

O Sistema Previdencial está intrinsecamente ligado ao crescimento económico, ao emprego e aos salários. Este sistema é hoje mais sustentável. O financiamento pode ser ainda mais reforçado com crescimento económico elevado, com o aumento dos salários e com a criação de emprego de qualidade.

 

2. O Relatório da Sustentabilidade

 

O Orçamento de Estado integra, como documento anexo, o Relatório de Sustentabilidade do Sistema Previdencial. Trata-se de um documento que analisa a evolução deste sistema nos últimos 10 anos e que faz projecções para o período de 2019 a 2070. Trata-se de um período demasiado longo, a que acresce o facto de as projecções se basearem num cenário de muito baixo crescimento económico (1,2% ao ano) num contexto

de uma enorme incerteza a todos os níveis. Este valor médio é retirado de um documento da Comissão Europeia sobre as consequências do envelhecimento da população sobre a despesa social.i

É de estranhar um tão baixo valor num contexto em que a vertente tecnológica, incluindo a mudança digital, é apontada à opinião pública como fonte de crescimento económico, pelo que seria de esperar um valor mais elevado sobretudo num contexto marcado por fundos europeus expressivos, que, por exemplo, financiam o Plano de Recuperação e Resiliência.

O Relatório de Sustentabilidade projecta o aparecimento dos primeiros saldos negativos do Sistema Previdencial, em particular do sistema de pensões, durante a década de 2030. Apesar disso, o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), que mais à frente se abordará, não se esgota no período de projecção.

 

3. As medidas COVID-19, o «pacote família» e o seu financiamento

 

A Segurança Social sofreu o impacto do financiamento de medidas COVID-19 em 2021 e 2022 e das medidas destinadas a combater a inflação, nas quais se insere o designado «pacote família» aprovado em Setembro de 2022. E, no final do ano, o apoio extraordinário dos 240 euros dirigidos às famílias mais carenciadas.

O financiamento das medidas COVID-19 deve ser assegurado por transferências do OE, tal como resulta da Lei do OE para 2021 e de legislação avulsa, de forma a assegurar que a segurança social não é prejudicada. O que não veio a acontecer.

O Governo admite hoje que existe um buraco no financiamento tendo usado recursos próprios do sistema que enfraqueceram o regime não contributivo, tendo ficado por transferir uma verba superior a 400 milhões de euros. O PCP questionou a ministra na Assembleia da República; todavia, a resposta não foi esclarecedora. O que se sabe é que, a menos que a transferência seja efectuada na totalidade, a Segurança Social foi prejudicada em 2021 e em 2022.

A despesa prevista do «pacote família», que integra como medida mais expressiva o complemento excepcional de pensão, é muito volumosa (938 milhões de euros), e a Segurança Social não pode ficar sem essas transferências, tal como em relação ao apoio extra dirigido às famílias mais carenciadas (240 euros).

Em suma, estes processos ilustram os riscos do recurso a transferências (ou seja, de impostos) para financiamento de determinadas medidas, como as medidas COVID-19, que não deveriam passar pela Segurança Social.

 

4. As dívidas à Segurança Social e a fraude e evasão contributiva

 

A Segurança Social tem uma elevado volume de dívidas, desconhecendo-se o montante previsto para a dívida no final do ano passado. A dívida de terceiros representou em 2020 um valor equivalente a 6,6% do PIB. Este tema deve ser enquadrado num conjunto de outras vertentes.

Primeiro, trata-se de um problema de fundo que nunca foi resolvido, apesar da publicação ao longo dos anos de legislação vária com vista à sua resolução.

Segundo, a cobrança é de baixo montante admitindo-se que não alcance os 500 milhões de euros em 2022, o que representa um declínio face a anos anteriores (a média no período de 2015 a 2021 foi de 596 milhões). Constata-se haver um enorme desvio face ao valor da dívida.

Terceiro, o sistema é opaco em relação à redução e a isenção de contribuições, as quais devem ser financiadas pelo OE. O sistema em vigor deveria ser revisto. Actualmente, estes instrumentos servem para tudo sendo a segurança social usada como um meio de política económica. Até servem para financiar catástrofes naturais.

Quarto, é sabido que em vários sectores económicos existe subdeclaração de salários (os salários declarados à segurança social estão longe dos montantes pagos), admitindo-se que se trate de um valor muito elevado.

É necessário terminar com a permissividade, sendo preciso, entre outras medidas, repensar os instrumentos de cobrança; criar instrumentos eficazes de acompanhamento da dívida; proceder ao apuramento dos juros vencidos para efeito de conhecimento do valor real da dívida; fazer cruzamento de dados, quando necessárioi. Seria ainda útil dispor de uma medida da subdeclaração salarial por actividade económica.

 

5. O argumento da complementaridade

 

A seguir ao 25 de Abril, muitas convenções colectivas fixaram regimes complementares ao nível de empresa ou mesmo de sector, embora aqui menos frequentes. A convenção estabelece uma prestação complementar à que é paga pela segurança social pública em diversos domínios, incluindo as pensões. O financiamento é assegurado pela empresa que pode constituir ou não um fundo de pensões.

O patronato pretende, a todo o custo, reduzir a despesa com as pensões, pelo que propõe a baixa da Taxa Social Única (TSU) para «aliviar» o custo com o trabalho. A CCP fez mesmo um estudo onde aceita o alargamento da base contributiva ao valor acrescentado líquido das empresas desde que o aumento das receitas obtido seja usado para reduzir a TSU.iii

Existe o risco da Comissão para a Sustentabilidade vir a dar voz às propostas patronais. O argumento é o da complementaridade, mas a finalidade é a substituição das pensões públicas por pensões em que uma parte é privada. Seria estabelecido um plafonamento (um valor máximo sobre o qual se descontaria para a segurança social). O valor da pensão pública seria «complementado» por uma pensão privada de empresa, as quais constituiriam fundos de pensões. Foi já apontado o valor de 40% para a pensão pública. O Governo incentivaria a criação destes fundos com apoios fiscais. A acontecer, haverá uma desconfiguração do sistema público, tal como está na Constituição da Républica.

 

6. O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social

 

A Segurança Social tem um fundo de reserva, o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (Fundo). O seu objectivo é assegurar a estabilidade financeira através da constituição de uma reserva que permita o pagamento de 24 meses de pagamento de pensões contributivas. Para esse efeito é transferida para o Fundo uma parcela a 2% a 4% do valor correspondente às contribuições da parte dos trabalhadores. O Fundo beneficia também dos saldos anuais do sistema previdencial, das receitas resultantes da alienação de património e dos ganhos obtidos das aplicações financeiras. A partir de 2017 passou também a beneficiar da consignação de algumas receitas fiscais (exemplo: adicional ao IMI).

O objectivo não foi alcançado, apesar de o Fundo ter sido criado em 1989, ou seja já terem decorrido 34 anos. O FEFSS tem uma carteira de 22,5 mil milhões de euros em 30.11.22, o que corresponde a 9,7% do PIB e a 17,65 meses de pensões do regime contributivo.

Apesar do tempo decorrido, o Fundo não está ainda constituído de forma a assegurar o objectivo mínimo legal. Neste período nem todos os anos foram de baixo crescimento económico e alguns anos desde 2016 foram mesmo de crescimento significativo. Em resumo, não houve uma aposta para criar o Fundo tal como foi legalmente determinado.

 

7. Opacidade

 

Existe uma grande opacidade sobre múltiplos aspectos. Os progressos têm sido limitados. A Lei do OE para 2021 estabelece que O Relatório de Execução do Orçamento indica o custo das medidas COVID-19, mas muitos outros aspectos permanecem na sombra. Existe falta de informação sobre as dívidas, a sua cobrança e o montante dos juros não pagos, mas que deveriam ser cobrados no momento da regularização das dívidas de contribuições. Não se conhece o montante da perda de receita derivada das isenções e reduções contributivas. Não se tem ideia do montante envolvido na subdeclaração de remunerações. Há casos onde o trabalhador é pago pelo salário mínimo nacional, recebendo outras quantias não sujeitas a desconto para a Segurança Social. Esta situação prejudica o trabalhador, uma vez que recebe prestações mais reduzidas, incluindo pensões.

A sustentabilidade da Segurança Social é indissociável do aumento geral dos salários, da criação de emprego, do combate à precariedade e ao desemprego, à fraude e evasão contributivas e aos usos indevidos dos dinheiros da Segurança Social. Seria ainda reforçada com uma taxa sobre o valor acrescentado líquido (VAL) das empresas.

O PCP tem apresentado propostas nestes domínios, que o PS tem rejeitado, nomeadamente a criação de uma contribuição complementar das empresas que têm mais lucros, mas que contribuem pouco para a Segurança Social tendo em conta a riqueza líquida refletida no Valor Acrescentado Líquido (VAL), o que permitirá incentivar a criação de emprego, reequilibrar as condições de desenvolvimento da atividade económica e assegurar a sustentabilidade do sistema público de Segurança Social a curto, médio e longo prazo, e colocar a riqueza produzida no país a contribuir, de forma mais justa, para o regime contributivo da Segurança Social.

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i European Commission, The 2021 Ageing Report, Maio de 2021

ii CGTP-IN, «Comissão da Sustentabilidade da Segurança Social», 9.9.22 (Documento interno)

iii Armindo Silva, O Sector dos serviços e os desafios da segurança social, CCP, 2018