Gal Costa: «Tem momento em que o artista tem de se posicionar»

Nuno Gomes dos Santos

Durante a ditadura militar, Gal Costa foi a voz que cantou os autores exilados

TECA LAMBOGLIA

No tempo da ditadura militar no Brasil, Gal Costa queria estar de novo com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Guilherme Araújo, forçados a emigrar por motivos políticos. A cantora terá mesmo dito que, se tivesse condições financeiras, iria com eles para Londres. Foi nessa cidade e nesse tempo que Caetano escreveu London, London. Gal cantou essa canção-testemunho de um exílio forçado e de uma vontade da Liberdade que estava arredia do seu país.

É apenas um episódio, um exemplo dos muitos que poderíamos dar – e daremos alguns – do empenhamento da «melhor cantora do mundo», nas palavras superlativas de Lula da Silva, na luta política pela democracia.

Quando a grande jornalista Miriam Leitão, então grávida, foi presa e torturada pela ditadura militar brasileira, em 1972, por ser militante do Partido Comunista do Brasil, cantou, na prisão, muitas vezes acompanhada por outras prisioneiras, Assum Preto («… por ignorança / ou mardade das pió / furaram os óio do Assum Preto / pra ele assim cantá mió /(…) Assum Preto veve sorto / mas não pode avuá / mil vezes a sina de uma gaiola / desde que o céu, ai, pudesse oiá»), canção de Luiz Gonzaga que Gal interpretou superiormente. Nas palavras de Miriam Leitão, «tudo o que Gal Costa cantou foi maravilhoso, ao longo de toda a vida, mas o Assum Preto virou para mim e as meninas na cela uma espécie de hino para esperar tempos melhores».

Gal interpretou e gravou, em 1968/69, a canção Divino, Maravilhoso, de Gil e Caetano, que esteve na origem do movimento tropicalista da música brasileira, que contagiou o teatro, o cinema e as artes plásticas e defendia novas formas de expressão, numa fusão do tradional e do moderno. Na altura surgiu o LP Tropicália ou Panis et Circenses, uma «bíblia» do movimento, no qual participaram, para além de Gil e Caetano, os «Mutantes», Tom Zé e Gal Costa. A cantora passou a ser, como testemunharam Mariana Niedeauer e Pedro Grigori num trabalho recente sobre a intérprete de Meu Nome é Gal, «a voz que cantava as letras dos exilados da ditadura». E havia um refrão incontornável: «É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte.»

Cabe aqui uma referência ao concerto que juntou, nos anos 1970, Mercedes Sosa, Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gal Costa. A interpretação de Voltar aos 17, canção que Violeta Parra compôs em 1962, é antológica, tanto mais que juntou um grupo de cantores e cantautores que estavam «atentos e fortes», cantando a vida «sem tempo para temer a morte».

Gal na primeira pessoa

Disse Gal Costa, falando de si, que lutou pela Liberdade, não esquecendo a liberdade sexual: «Fui uma mulher libertadora, no sentido verdadeiro. Procurei viver a vida que acreditava e acredito. Mas nunca tive essa personalidade no sentido de militar mesmo. Acredito na liberdade e no respeito. Sou uma democrata.»

Por ter sido isso mesmo é que, em Setembro, num festival, desenhou um «L» (de Lula) e disse: «vamos sonhar com um Brasil melhor. Daqui a 15 dias a gente escolhe. Vamos votar com sabedoria e inteligência. Vamos votar sem ódio e vamos votar com amor.»

Numa entrevista recente lembrou a censura no tempo da ditadura militar, lamentou os saudosistas («tem gente que quer voltar a esse tempo»), fez notar que «tem momento em que o artista tem de se posicionar». E rematou: «Fora Bolsonaro!»

Gal Costa (baptizada Maria das Graças Penna Burgos, nome que mudou para o que conhecemos e mereceu uma canção, Meu Nome é Gal, «oferecida» à cantora por Erasmo Carlos e Roberto Carlos) morreu em Novembro passado. Tinha 77 anos. As primeiras condolências foram as de Lula da Silva, Dilma Roussef, Marina Silva e, como não podia deixar de ser, de Gilberto Gil e Caetano Veloso.




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