Criptoquê?
Os «criptoactivos» e «criptomoedas» não são para regular: são para acabar
Em meados de 2008 surgiu com furor uma proposta de uma nova moeda, apresentada essencialmente como uma moeda liberta de controlo por parte dos bancos centrais, produzida de forma descentralizada e pública, com base numa tecnologia que até então pouco se ouvira falar, o blockchain. Essa tecnologia assegura a veracidade do activo, da sua origem e de todos os seus usos e transacções, impedindo a sua falsificação ou a sua utilização por mais do que uma vez.
A confusão entre moeda electrónica, moeda digital e criptomoeda instalou-se rapidamente, em parte também devido ao mau uso do termo «criptomoeda», que tem mais de marketing do que de ciência e à incompreensão por parte da generalidade do público sobre os conceitos de criptografia em geral.
Tendo fascinado o mundo da comunicação social e da finança, acabou por deslumbrar investidores, especialmente os não institucionais, criando a ilusão de que se tratava de um activo «fora do sistema» ou mesmo «anti-sistema» ou «alternativo», e até mesmo «anticapitalista» e forma de evitar futuros colapsos de bancos como os de 2007/2008. Por toda a comunicação social, em vários espaços na Internet e até com a aprovação de políticas estatais em alguns países, a criptografia pública com recurso ao blockchain fez um percurso de afirmação baseado na ideia de que se tratava de uma moeda, tal como concebemos a generalidade das moedas, ou seja, como mercadoria universal.
A tecnologia blockchain, em si mesma, tal como as restantes tecnologias, não comporta um sinal ideológico: é a sua utilização que determina o seu papel em cada contexto. Neste momento específico, essa tecnologia foi colocada inteiramente ao serviço da especulação capitalista, da fraude e da fuga fiscal.
Mecanismo de especulação
Ao contrário da moeda tal como a conhecemos, estes activos não estão associados a nenhuma dívida privada ou soberana. Por exemplo, uma acção está associada ao capital de uma empresa, uma moeda está associada à dívida de um estado soberano, enquanto uma «criptomoeda» não está associada a qualquer activo além da própria «cripto». É verdade que desde o fim do padrão ouro e principalmente desde o Nixon shock, em 1971, a generalidade das moedas soberanas não tem respaldo material, no entanto pode dizer-se que tem um respaldo financeiro proporcional à capacidade que o Estado que emite a moeda (ainda que através de bancos privados) tem de pagar a dívida associada à moeda em circulação.
Nesse sentido, um «criptoactivo» ou uma «criptomoeda» funciona muito mais como uma obra de arte (que os milionários compram para parquear riqueza sem estar monetarizada e não pagar impostos nem estarem sujeitos ao sistema financeiro regulado) do que como uma moeda. Ou seja, representa apenas o valor que o mercado em cada momento histórico esteja disposto a pagar por esse activo, geralmente, e não por acaso, medido em moedas soberanas. A utilidade encontrada para esses activos pelo sistema capitalista traduz-se apenas em mais um mecanismo de especulação e acumulação e, ao mesmo tempo, numa forma de fuga aos instrumentos de regulação financeira e bancária, sendo que a maior parte desses activos circula à margem do sistema bancário e do sistema financeiro regulado.
Sai sempre «à casa»
A queda da segunda maior corretora de «cripoactivos», a FTX, num período curtíssimo de tempo e associada ao colapso de um «império» que chegou a estar avaliado em 32 mil milhões de dólares, ilustra a volatilidade do activo que transaccionava. No essencial, a FTX agiu como um banco aventureiro, utilizando os depósitos dos clientes para se alavancar a níveis muito acima da sua capacidade de repagamento, mas sem qualquer responsabilidade financeira e sem regulamentação e regulação. A prática que possibilitou à FTX a sua ascensão meteórica, a acumulação tremenda e a alavancagem extrema foi a da especulação sem limite: os «activos» em torno dos quais se realizou essa especulação foram as «criptomoedas», o centro do mais moderno e mais tecnológico, mas igualmente fraudulento, HJUB, esquema de Ponzi.
Que isso não sirva de justificação para uma eventual regulamentação do sector: na verdade, tal como grande parte dos chamados «produtos financeiros complexos», ou «criptoactivos», são essencialmente produtos desprovidos de quaisquer garantias, servindo uma economia de casino que, tal como no casino, saem sempre à casa. Os «criptoactivos», sob uma capa de seriedade e independência do funcionamento do capitalismo, são exactamente o expoente máximo da financeirização da economia, da fuga fiscal, da especulação e da acumulação capitalistas. Os «criptoactivos» e «criptomoedas» não são para regular: são para acabar.