Embustes e armadilhas da «redução de impostos»
Com a promessa de uma generalizada redução de impostos, o Governo tenta disfarçar a sua intenção de aplicar aumentos salariais inferiores à inflação. No entanto, na proposta de Orçamento do Estado para 2023 inclui medidas que desmentem essa promessa e vão agravar a injustiça fiscal e as desigualdades.
O bodo aos ricos está nos benefícios fiscais, só acessíveis às grandes empresas
Que imposto mais pagam as famílias de menores rendimentos?
A discussão sobre o OE que teremos no próximo ano aumenta o interesse em falar sobre impostos, fundamentais para garantir as receitas necessárias ao funcionamento dos serviços públicos e da Administração Pública.
No resto do ano, o ruído que se ouve é essencialmente o das queixas dos grandes patrões, amplificadas pela sua comunicação social, clamando que pagam demasiados impostos. É conversa de rico não querer pagar impostos.
Neste mês de Outubro, fala-se de impostos para lá desse ruído, mas o acento continua a ser colocado na sua redução. Vale a pena olhar mais detalhadamente este tema.
Os impostos dos trabalhadores
Grosso modo, os impostos podem ser divididos em directos (aqueles que taxam os rendimentos e os lucros) e indirectos (os que taxam o consumo).
Os impostos directos são muito mais justos do que os impostos indirectos, se forem progressivos, como acontece em Portugal. Porquê? Porque taxam mais os rendimentos ou lucros mais elevados e taxam menos aqueles que são mais baixos. Têm, assim, uma função de ligeira diminuição das desigualdades.
Já os impostos indirectos atingem cada um de acordo com o seu consumo. Ora, se é verdade que os mais ricos consomem mais, também é certo que eles não consomem todo o seu rendimento, muito longe disso. Pagam imposto sobre o consumo à mesma taxa que a restante população. As desigualdades não são atenuadas pelo IVA e demais impostos indirectos.
Eis a primeira armadilha do OE 2023. O Governo propõe reduções nos impostos directos: ligeiras, no IRS, e significativas, no IRC. Ao mesmo tempo, por efeito da inflação, continua a crescer a receita dos impostos indirectos (só o IVA crescerá este ano 3,2 mil milhões de euros).
De que valem essas ligeiras reduções no IRS? As simulações do Governo, que nos mostram reduções brutais de IRS para as famílias de menores rendimentos, são, no essencial, uma mistificação, por duas razões:
– os agregados de menores rendimentos já não pagam tanto IRS;
– o imposto que mais atinge os agregados familiares de menores rendimentos é o IVA, seguido do ISP e de outros impostos indirectos.
É por isto que são demagógicas e artificiais todas as discussões e simulações que assentam em cortes de centenas de euros no IRS dos trabalhadores dos escalões de tributação mais baixos.
Mas essa argumentação também comporta um perigo: fingindo que estão a cortar onde não há margem para cortes, deixam imune aquilo onde seria justo reduzir.
Ressalva-se ainda outro embuste: o Governo oferece como redução algo que não o é, antes pelo contrário.
Actualizar as tabelas de IRS segundo a taxa de inflação é o mínimo que deve ser feito, para que os contribuintes não paguem cada vez mais IRS. Mas o mesmo Governo que estima uma taxa de inflação de 7,4% vem propor uma actualização das tabelas de IRS em 5,1%. A diferença (2,3%) custará 30 euros à família Exemplo (ver caixa).
Além disso, o Governo finge esquecer que, para não haver aumento real de imposto, também o valor das deduções à colecta deve ser actualizado, segundo a taxa de inflação.
À família Exemplo, a não actualização das deduções à colecta custará, potencialmente, 155 euros. Repetimos: potencialmente porque, de facto, a maioria dos agregados familiares com rendimentos baixos já não paga valores significativos de IRS.
Na proposta de OE 2023, a única redução real no IRS resultará de passar a taxa do 2.º escalão de 23% para 21%. Na família Exemplo, o impacto desta diminuição será de 72 euros (36 euros por contribuinte). Mas, nos escalões de rendimentos superiores, o IRS baixará 61 euros por contribuinte.
Para reduzir o peso dos impostos indirectos sobre as famílias trabalhadoras é preciso mexer no IVA. Um dos primeiros passos a dar, nesse sentido, seria taxar a 6% o essencial dos bens de primeira necessidade, aquilo em que as famílias trabalhadoras gastam o grosso dos seus rendimentos: a electricidade (toda!), o gás (todo!), os produtos alimentares transformados e outros. As telecomunicações deveriam passar a ser sujeitas à taxa intermédia (13%).
Para a família Exemplo, estas medidas teriam um impacto teórico positivo de cerca de 200 euros.
Claro que medidas destas só poderiam ser tomadas a par de outras que assegurassem o aumento de receitas dos impostos directos. Já está demonstrado que tal é possível e é justo.
IMPACTO DA PROPOSTA DO PCP |
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Passar bens de primeira necessidade para taxa de IVA de 6% |
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Benefício (pagaria menos) | 200,00 |
IMPACTO DAS OPÇÕES DO GOVERNO | |
Actualizar tabelas do IRS abaixo da inflação | 30,00 |
Não actualizar as deduções | 155,00 |
Reduzir taxa do 2.º escalão de 23% para 21% | -72,00 |
Custo agravado (pagaria mais) | 113,00 |
As benesses do capital
No OE 2023 as verdadeiras reduções estão no IRC. Não surgem por via de uma diminuição directa, claro, porque o Governo quer continuar a falar em «orçamento à esquerda».
O verdadeiro bodo aos ricos está na multiplicação das alcavalas, nos benefícios fiscais que só estão acessíveis às grandes empresas.
No último Relatório e Contas da EDP (2021, pág. 352), por exemplo, salta à vista como a administração se gaba da capacidade de fugir aos impostos: uma taxa «teórica» de 29,5% (explicada como a média das taxas aplicáveis às empresas do Grupo EDP em Portugal) compara com uma taxa efectiva de 18,4%.
Em vez de um imposto «teórico» de 419 milhões de euros, a EDP pagou menos de 262 milhões, ou seja, conseguiu escapar-se ao pagamento de mais de 150 milhões de euros de imposto sobre o lucro.
Com o OE 2023, grupos como a EDP terão a vida ainda mais facilitada.
Procurando ocultar estes benefícios milionários, é agitada a ideia de que a intenção do Governo é ajudar as micro, pequenas e médias empresas, que poderão até ter uma ligeiríssima redução do IRC.
O alargamento, proposto pelo Governo, dos limites da taxação a 17%, de 25 mil para 50 mil euros de matéria colectável, tem um impacto positivo nas MPME que pagam imposto. Mas a maioria das MPME não paga IRC por via da taxa sobre a matéria colectável, paga-o indirectamente, por via das tributações autónomas.
A tributação autónoma aplica-se a determinados encargos das empresas e tem taxas diversas. No caso dos encargos com viaturas ligeiras, as taxas variam entre zero e 35%.
Neste caso, como o PCP propõe, a isenção de uma viatura por empresa representaria uma redução focada nas MPME. Mas, na proposta de OE 2023, a preocupação com a redução do IRC não tem as MPME por principal destinatário.
Mais de dois terços dos agregados declararam rendimentos inferiores a 19 mil euros
O IRS dos rendimentos baixos
Nas estatísticas do IRS, em 2020 (AT, Novembro de 2021), 69,2% dos agregados (3 791 915) declararam rendimentos brutos inferiores a 19 mil euros.
Dos 5 479 417 agregados que apresentaram declarações (Modelo 3), houve 3 043 791 (56%) que tiveram IRS liquidado, num total de 13 160 milhões de euros. Não foi apurado qualquer valor de IRS a 2 435 626 agregados (44%).
Dos agregados com rendimentos brutos até 19 mil euros provieram apenas 11% do total do IRS liquidado.
A família Exemplo
É um agregado familiar como muitos outros. Cada elemento do casal recebe pouco mais que o salário mínimo nacional. Têm dois filhos que vão à escola.
O seu rendimento anual é de 25 mil euros. Retirando as duas deduções específicas (4104 euros cada), restam 17 792 euros. Aplicando o coeficiente familiar, resultam 8 896 euros, o que coloca os seus rendimentos colectáveis no 2.º escalão.
Como o IRS é progressivo, são aplicados 14,5% aos rendimentos do primeiro escalão e 23% aos do segundo (14 224x14,5% e 3 568x23%). São 2 883 euros de colecta. Como há dois filhos, abate-se à colecta 1 200 euros. Ficam 1 683 euros de imposto.
A família ainda pode abater até 2 000 euros de deduções à colecta: 500 euros das despesas gerais familiares (facilmente alcançáveis), até 1 600 euros das despesas de educação (só em fichas de apoio...) ou até 2 000 euros das despesas de saúde. Mas a família Exemplo apenas tem possibilidade de abater metade do limite, ou seja, 1 000 euros.
Tem a pagar 683 euros de IRS. Como durante o ano houve 850 euros de retenções na fonte (3,4%), o agregado receberia 167 euros, no acerto de contas realizado após a entrega da declaração.
Mas quanto terá a família Exemplo pago de outros impostos?
Todo o seu baixo rendimento foi destinado ao consumo e foi sujeito ao pagamento de IVA, cuja taxa média efectiva é de 17% (2015-2019, dados da AT). Fazendo contas por baixo, assume-se que a família teve 11 700 euros de despesas, aqui incluindo 1700 euros de IVA.
Se ainda conseguirem ter um carro (com dois filhos, não lhes resta grande alternativa, se vivem numa cidade), gastam quanto em gasolina? Poupadinhos, 80 euros por mês, cerca de 1 000 euros por ano – e assim pagam uns 300 euros em ISP. Acresce o IUC.
Cortes aumentam injustiça
A sucessiva diminuição das receitas do IRC, face ao IRS, e destes dois, face aos impostos indirectos, é uma das fontes da injustiça fiscal em Portugal. Por isso, a discussão sobre mais justiça fiscal, por via do IRS e do IRC, não pode focar-se em como os baixar.
Mais justiça só se conseguirá com mais receita no IRS e no IRC.
Há anos que o PCP vem defendendo o englobamento de rendimentos no IRS, pelo menos no último escalão (acima de 78 mil euros, com uma taxa de 48%).
Os rendimentos do trabalho têm de ser sujeitos a IRS. Mas há muitos rendimentos singulares, como os imobiliários, que têm taxas autónomas menores. Para pagar menos IRS, estes são declarados à parte dos rendimentos do trabalho.
Com o englobamento obrigatório, todos os rendimentos seriam considerados num conjunto único. Na parte que ultrapassasse os 78 mil euros, os rendimentos seriam todos taxados a 48%. No fundo, trata-se de garantir que os rendimentos dos mais privilegiados não são sujeitos a uma taxa menor que os rendimentos do trabalho.
Seria, assim, possível assegurar mais justiça no IRS, sem diminuir a receita global, antes aumentando-a.
Também tem de subir o IRC, o imposto sobre os lucros. Só cerca de 10% da receita fiscal vem do IRC.
Apesar do muito que choram, os capitalistas pagam muito poucos impostos.
Somando a taxa de IRC (21%), a derrama estadual máxima, para empresas com matéria colectável acima de 35 milhões de euros (9%) e a derrama municipal máxima, (1,5%), a taxa máxima de imposto sobre os lucros é de 30,5%.
Ainda neste século, já foi 5% mais alta. Mas, com o seu domínio ideológico, o grande capital tem propagado que é preciso baixar impostos para «atrair investimento». Os países são colocados a concorrer uns com os outros, a ver quem baixa mais os impostos, assim enchendo a barriga ao grande capital.
Com um muito elevado grau de concentração capitalista, só 44 empresas pagaram a taxa máxima da derrama estadual em 2020, no total de 282 milhões de euros. Este ano vão pagar muito mais, pois o aumento dos lucros foi gigantesco. Uma subida de 5% na derrama estadual mais elevada, para rendimento colectável acima de 50 milhões de euros, como o PCP propõe, seria uma medida justa e propiciaria uma receita fiscal significativa.