Alice estava espantadíssima pelos abraços que o pai, vindo de Braga, dava e recebia a cada passo. Ela visitava a Festa pela primeira vez, e não sabia que podia haver tantos camaradas; ele já não entrava ali há cinco anos, e tinha muitos para rever e abraçar. Neste ano, o grupo era grande. Alice estava também acompanhada pelo avô, os tios e as três primas, todos de Matosinhos.
Um ambiente familiar que se reproduzia em cada palmo de terreno. Reencontros emocionados, pais e mães e filhos de mãos dadas ou à distância de um olhar protector, incontáveis carros de bebés percorrendo as avenidas, descansando nas sombras ou alinhados junto a qualquer uma das três dezenas de actividades que fizeram a Festa das Crianças.
Se a Festa tivesse forma de ditado popular poderia ser algo assim: volta ao sítio onde foste feliz e traz as tuas crianças.
As famílias sentem-se bem na Festa e a Festa sente-se bem com isso. A diversidade própria do convívio entre gerações pinta-a com tons únicos e foi possível observá-lo nos pequenos concertos, teatro, oficinas criativas, histórias contadas, pinturas faciais, jogos ou simplesmente nas brincadeiras que se inventam em liberdade. O resultado foi o pretendido: corrupios de gargalhadas, suor, conhecimento, espanto, alegria e vontade de voltar.
No anfiteatro do Espaço Criança, dinamizado pelos Pioneiros de Portugal, onde se desenrolava o teatro de marionetas de espuma, centenas desaprovavam em atento silêncio a preguiça do chinês gordo que passava a vida deitado de barriga para o ar, rasgado pelas notas do violino. Afinal, quem quereria ficar deitado de barriga para ar quando se podia explorar, mesmo ali ao lado, baloiços, escorregas, torres e todo o tipo de passadiços mais ou menos suspensos que apelam à aventura e à descoberta?
Direito a ser criança
Nesta terra de sonhos e sorrisos, as crianças tiveram tempo e espaço para ser crianças, direito inalienável que tem de ser garantido nos restantes dias do ano e que na opinião dos participantes no debate Serviços Públicos a Pensar nas Crianças – Aguinaldo Cabral, Rosa Vaz, Sandra Pereira, Gonçalo Oliveira e Margarida Botelho – consiste na devida organização do tempo de educação e brincadeira, no estímulo à invenção e auto-criação, na relação com os elementos da natureza.
E que tempo sobra para isso num país onde em média se trabalha 41 horas por semana e as crianças passam dez na creche? Em que 70% dos postos de trabalho criados no primeiro trimestre de 2022 correspondem a vínculos precários e perto de 1,8 milhões de assalariados trabalham por turnos, ao sábado, domingo, noites, ou numa combinação destes horários? O que sobra de vida e estabilidade emocional para partilhar com a família? Que peso tem esta realidade na decisão de constituir família? Estas foram algumas questões levantadas no debate e sublinhadas na exposição do Espaço Central, Crianças e pais com direitos, Por um Portugal com Futuro.
No crescimento de uma criança, as famílias têm um papel insubstituível, mas o Estado tem responsabilidades próprias que não pode descartar e a sobrecarga dos horários não é só um fardo dos pais, é um fardo das crianças e transforma a vida de todos num inferno, numa corrida contra o tempo de convívio familiar, brincadeira e descanso.
Em Portugal, de acordo com o Inquérito à Fecundidade de 2019, o número médio de filhos por mulher é de 1,42, bastante inferior ao desejado (2,15) e ao necessário para a substituição de gerações (2,1). Mais de metade das mulheres e homens dos 40 aos 49 anos desejava ter mais filhos do que efectivamente teve.
Não é muito difícil imaginar o que falta para tornar esse desejo realidade e ao PCP não falta compromisso nem força para continuar a luta por uma política que associe os direitos dos pais e das crianças, as de hoje e as que hão-de vir, e os defenda de forma integrada, numa política de desenvolvimento social e humano onde viver, participar e apoiar o crescimento de um filho implique ter um salário digno, um vínculo permanente, boas condições de trabalho e horários com tempo para viver, acesso a habitação, creche, escola, serviços de saúde e transportes.
Assim se vê a força de quem sorri
O Álvaro ainda não sabe ler. Andava entretido pelo espaço da exposição central sob o olhar atento do pai, Pedro Sousa, empilhando cubos de cartão ao sabor da imaginação e tamanho do braço. Provando que há uma forma certa de brincar com coisas sérias, todos os cubos tinham um alfabeto de direitos que, de A a Z, mostrava o que é preciso para que pais e crianças vivam felizes em Portugal.
A maior parte das meninas e meninos que carregavam os cubos não compreendiam bem o que lá estava escrito e davam mais valor ao tamanho e à forma das torres e paredes, à graça do seu equilíbrio frágil e inevitável queda e à alegria da reconstrução, sempre em combinações diferentes de cores e valores que alguns pais, que compreendiam bem o que lá estava escrito, iam pacientemente lendo e explicando, entre amor e gargalhadas, num exercício de paternidade e maternidade feliz e livre que os comunistas querem para Portugal, todos os dias.
No final da Festa, a Alice percebeu que camarada é aquele com quem se partilha o sonho de um mundo mais justo e que luta, ombro a ombro, para o concretizar.