O espectáculo Música na Palavra de Saramago com que o escritor, Prémio Nobel da Literatura, foi homenageado na Atalaia comprovou que um concerto sinfónico para o grande público pode ter algo mais do que, apenas, «música fácil».
O aplauso entusiasmado dos milhares de espectadores com que, no final da apresentação da peça Memorial, de António Pinho Vargas, o seu autor foi recebido sexta-feira no Palco 25 de Abril não foi apenas uma saudação justíssima e empolgada ao brilhantismo da composição, bem como aos claros méritos da Orquestra Sinfonietta de Lisboa e do seu maestro Vasco Pearce de Azevedo pela interpretação que fizeram dessa obra.
A reacção a esses 20 minutos finais, de um espectáculo que durou um total de duas horas e 22, colocou também, em cima da mesa, um problema cultural relevante.
O público do Avante!, obviamente, entusiasma-se e usufrui plenamente da música que, grosseiramente, poderemos classificar de «mais fácil», como as composições ali apresentadas de Scarlatti, Beethoven, Bach, Elgar ou Mozart poderiam ser classificadas.
Mas esse mesmo público soube, simultaneamente, «ler», descodificar e desfrutar de uma peça dita «difícil», arrojada, contemporânea, que confrontou a inteligência e a sensibilidade dos ouvintes com paisagens sonoras desconhecidas.
O êxito conseguido por Memorial coloca, portanto, em causa o frequente ostracismo que, em nome de interesses comerciais imediatos ou de cedência a um maior denominador comum estético, são votadas obras sinfónicas contemporâneas, especialmente as de autores portugueses.
As explicações que os apresentadores, Maria João Luís e Cândido Mota, foram dando ao longo da noite sobre a relação da música que se ia ouvindo com a obra de Saramago terão ajudado a criar ambiente para que essa relação do público com as composições que se iam interpretando fosse mais profunda e rica e, por isso, mais inteligível.
Mas o espectáculo de abertura da 46.ª edição da Festa do Avante!, para além da ilustração sonora composta por Pinho Vargas sobre o enredo de três romances de José Saramago, incluiu música citada em várias obras do Prémio Nobel da Literatura de 1998, a começar com música para cravo composta por Domenico Scarlatti (personagem do livro Memorial do Convento) com que Mafalda Nejmeddine arrebatou, logo no início do concerto, o público.
Os 100 anos de aniversário de Saramago que estavam ali a ser celebrados (a viúva do escritor, Pilar del Rio, e outros membros da direcção da Fundação Saramago figuraram entre os espectadores), proporcionaram também ao violoncelista Marco Pereira uma das maiores ovações da noite com a interpretação, a solo, de uma suite de Bach e, depois, com orquestra, de uma peça de Elgar – correram mesmo lágrimas pelos olhos de alguns espectadores.
As árias de D. Giovanni de Mozart interpretadas por Alexandra Bernardo e Armando Possante suscitaram os momentos mais divertidos da programação, justificando até o encore final com que o concerto, alegremente, acabou.
Antes disso, os ecrãs gigantes do palco 25 de Abril recuperaram um depoimento do Prémio Nobel da Literatura de elogio ao trabalho militante que constrói a Festa do Avante!.
Nesse vídeo, Saramago recordava os tempos em que ele próprio ajudara a construir pavilhões na Festa e onde explicava que os militantes do PCP, que se empenham todos os anos na edificação do evento, trabalham não só para a Festa como «trabalham para o país. Trabalham para o futuro e trabalham para um sentimento de comunidade e de solidariedade de que o Partido é talvez o exemplo mais flagrante de toda a sociedade portuguesa».
E, na verdade, acontece que até na divulgação de música sinfónica o trabalho que é feito na Festa do Avante! mostra ao País, todos os anos, o como é diferente a abordagem dos comunistas portugueses...