Novo Estatuto do SNS – mais um passo atrás
Passados os aplausos e a desilusão de qualquer recompensa pelo notável esforço dos seus profissionais no combate à pandemia, o SNS volta a mostrar rupturas nas Urgências, transformadas, por continuados erros de organização, num dos seus mais procurados e saturados acessos.
É preciso pôr em prática uma política de saúde que defenda e dê prioridade, mesmo que contra os poderosos interesses instalados, aos direitos que ela assegura a todo o povo português
Encerramentos e «fusões» de unidades e serviços que foram acontecendo por invocadas razões de «rentabilidade» e «eficácia», e o esgotamento e diminuição dos profissionais disponíveis, semearam a insegurança, lançando dúvidas sobre a garantia de assistência a que os cidadãos têm direito.
Como a velha história da mula que quando estava quase habituada a não comer, caiu morta, o SNS foi sendo subfinanciado, exaurido e despojado dos seus melhores quadros, instalações e equipamentos, e o que agora se vê e desperta os patéticos telefonemas da ministra da Saúde para tirar médicos de férias, é o resultado de décadas de medidas de agressão ao serviço público.
Segundo a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em 2020 e 2021 saíram, por termo ou rescisão de contrato, 1285 médicos especialistas e 3647 enfermeiros. Embora uma parte deles tenha voltado a ser contratada, observou-se uma perda definitiva de cerca de 800 especialistas e 1800 enfermeiros, confirmando a cada vez maior anemia do SNS.
Para além dos remendos com que tenta disfarçar os rombos que surgem no barco, o Governo promulgou recentemente algumas medidas consideradas de carácter estrutural, parecendo querer manter a orquestra a tocar enquanto vê se ele se afunda.
«Há falhas na gestão», repetem o primeiro-ministro e a ministra da Saúde, como se a frase (ou a autocrítica) lhes sacudisse responsabilidades próprias e de acordos à direita, e fossem agora, finalmente, conseguir pôr o dedo na ferida.
A verdade é que, por baixo de toda a argumentação usada, é a pressão dos grandes interesses que determina a estratégia de reduzir o serviço público a um mínimo assistencialista, que almofade as necessidades das camadas mais frágeis, deixando a fatia mais lucrativa para o sector privado.
O «novo» Estatuto
A esperança aberta com a derrota política e eleitoral dos governos da troika, a luta dos trabalhadores e do povo e a determinante intervenção do PCP, possibilitaram, em 2019, a aprovação de uma Lei da Bases da Saúde genericamente progressista, que aponta para o reforço do SNS e a inversão do desastroso processo de parasitação do apoio estatal pelas grandes empresas privadas, vindo da anterior Lei de Bases de 1990.
Agora «livre» e menos condicionado pela «esquerda a sério» (na expressão de Manuel Loff), o novo governo PS, com maioria parlamentar, parece mais à vontade para um regresso à sua vertente neoliberal.
E o novo Estatuto do SNS, nesse aspecto, não desilude. Com ele, o serviço público vê o seu futuro ameaçado e os grandes grupos financeiros podem continuar a espremer o SNS, que todos os anos vê «exteriorizar» cerca de 40% do seu orçamento, em total desrespeito pela nova Lei de Bases (2019), onde se afirma o carácter meramente transitório e supletivo do recurso ao sector privado.
O novo Estatuto integra, como unidades do SNS, instituições privadas com quem o serviço público estabelece contratos (art. 2, págs. 7 e 8), permitindo a cedência de exploração de serviços clínicos hospitalares a entidades externas (pag.32, art. 67), facilitando a infiltração promíscua de interesses adversos e mantendo em agenda as ruinosas Parcerias Público-Privado (PPP).
O recurso a empresas de trabalho temporário e de medicina feita à peça continuará, e o aparelho de controlo financeiro e administrativo ocupará cada vez mais espaço, mobilizando recursos que deviam ser investidos nos objectivos nucleares do SNS.
A criação de uma, ainda mal definida, Direcção Executiva do SNS, dedicada à «coordenação da resposta assistencial das unidades de saúde», apresentada como um dos pontos fortes do novo Estatuto, para além de procurar encher o olho a quem espera uma resposta «estrutural» à crise do SNS, não parece acrescentar nada de positivo, somando mais um órgão administrativo provavelmente desnecessário e redundante, conflituador com outros já existentes (ex: ACSS), servindo de caminho de fuga ao ministro e ao Ministério, sempre que a onda de críticas à política seguida se avolumar.
O novo Estatuto, consolida o maligno apagamento das Carreiras Médicas e do vínculo à função pública – que contribuíram decisivamente para a estabilidade e o progresso científico e organizativo do SNS –, confirmando o contrato individual como padrão fragilizador da relação de trabalho de médicos e restantes trabalhadores do SNS.
No seu artigo 100.º, estabelece que os trabalhadores ainda com vínculo à função pública o mantêm, mas apenas «com carácter residual (…) sendo os respectivos postos de trabalho a extinguir quando vagarem» art. 100, n.º 2).
Quanto ao desejado regime de «dedicação exclusiva» dos médicos (que deixou de ser atribuído em 2009), ele vê-se substituído, num passe de mágica, pelo novo conceito de «dedicação plena», que de exclusividade pouco tem, permitindo, em quase todas as circunstâncias, a continuação do exercício privado de medicina.
De resto, a «dedicação plena» tem um carácter temporário, só se aplicando a um diminuto número de médicos (ligados, principalmente, a cargos de chefia), não assumindo o carácter sistémico ou estrutural apregoado.
Outro ponto negativo do novo Estatuto é o estímulo à implantação de Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) no seio dos serviços clínicos hospitalares (pag. 45, art.90).
Apresentada com pezinhos de lã, a iniciativa constituiu uma autêntica bomba relógio que, a ser concretizada de forma generalizada, ameaça fazer implodir toda a estrutura hospitalar.
É o próprio conceito de serviço clínico, reconhecido no Estatuto como «célula básica da organização» (pág. 44, art. 89), que é abalado pelo surgimento, no seu interior, de uma «empresa» (o CRI) formada por alguns dos seus profissionais – tendo como base mínima um médico, um enfermeiro e alguém com valência em gestão –, que contratam directamente e de forma autónoma, com o Conselho de Administração, a prestação de cuidados a doentes em lista de espera, mediante uma compensação monetária (pág. 45, art. 91).
Percebe-se o açúcar e o veneno que o CRI atira aos profissionais e à opinião pública menos esclarecida: aos primeiros, oferece-se uma forma «empresarial» de aumento dos proventos, embora crie (entre profissionais e utentes) estatutos diferenciados, fragmentando a homogeneidade do Serviço e potenciando atritos e tensões. À opinião pública, acena-se com a resolução mais rápida da lista de espera, como se não fosse possível atingir o mesmo objectivo investindo na melhoria global da resposta do Serviço, promovendo o alargamento do seu quadro de forma a elevar a produtividade a curto e a longo prazo, favorecendo o ensino e a investigação (como se comprovou no passado, com as Carreiras Médicas).
Garante de um direito constitucional
Desde o início do SNS, o PCP tem apresentado propostas para aprofundar e alargar o seu carácter de grande prestador público, universal e gratuito de serviços saúde de qualidade, garante de um direito constitucionalmente estabelecido.
Pelo contrário, a direita, contando com posições dúbias ou o explícito apoio do PS, tem conseguido corroer o SNS, procurando transformá-lo num serviço residual, deixando tudo o resto para o lucrativo «mercado» da saúde.
A crise do SNS que, apesar de todas as malfeitorias e dificuldades, continua a prestar serviços essenciais e de grande qualidade aos portugueses (como se viu na pandemia), não tem, por isso, origem na falta de dinheiro do País, nem em erros técnicos por má gestão ou incompetência (que também os há), mas na opção política que dá prioridade à afirmação e crescimento dos grandes negócios.
Como se afirma na declaração do PCP sobre as rupturas recentemente observadas e a continuada deterioração do SNS, «o Governo assistiu a tudo e não tomou as medidas necessárias para começar a inverter esta grave situação. E a conclusão a tirar só pode ser uma: o Governo sabia que o resultado da sua inércia seria desastroso e quis que assim fosse. Sabia que o resultado seria o enfraquecimento do SNS e um campo aberto para o sector privado e quis que assim fosse».
Sublinhando essa opção governamental como uma das razões de ter votado contra o último Orçamento de Estado, o PCP esclarece que «a exigência de medidas urgentes – designadamente na valorização dos profissionais de saúde –, para defender o SNS, foi uma das três questões incontornáveis que colocámos ao Governo nessa altura – sem qualquer resposta positiva».
Como nos encerramentos e bloqueios observados nas urgências e nos cuidados primários, a solução não passa por medidas avulso nem pelo álibi de que o SNS «trabalha em rede» (como justificação das falhas), menos ainda por mandar às urtigas a hierarquia técnica e organizativa, pondo jovens internos a substituir especialistas ou colocando médicos sem diferenciação a ocupar o lugar de especialistas em Medicina Geral e Familiar, manifestando total desprezo pela qualidade da assistência prestada.
Mudar de rumo
A solução passa por acabar com o subfinanciamento crónico do SNS, por restabelecer órgãos de administração democráticos e participativos, pela reorganização dos diversos níveis de decisão e da rede de hospitais, de cuidados primários e de saúde pública com a descentralização, coordenação e autonomia necessárias ao seu bom desempenho, pelo restabelecimento de carreiras estáveis com remunerações justas que possibilitem a realização pessoal e profissional de médicos e restantes trabalhadores do SNS, pelo estimulo à sua opção por «dedicação exclusiva» ao serviço público, pelo emagrecimento da carga burocrática e administrativa excessiva, pelo abandono da gestão «empresarial» fixada numa «produção» numérica e estatística cada vez mais distanciada da realidade, pela proibição da gestão privada de serviços públicos e diminuição do recurso a entidades «de fora», pela aposta no maior desenvolvimento e alargamento do SNS, nomeadamente no campo dos cuidados domiciliários, continuados e paliativos e na saúde mental, oral e oftalmológica.
Não é, pois, por não saber o que pode e deve fazer (ou falta de propostas como as do PCP), que o Governo se agita e gesticula, parecendo activo e preocupado, enquanto deixa o serviço público deslizar para a agonia.
O que é preciso, é mudar de rumo, defendendo a Constituição, pondo em prática uma política de saúde que defenda e dê prioridade – mesmo que contra os poderosos interesses instalados – aos direitos que ela assegura a todo o povo português.
O que é preciso, é pôr em prática, na saúde, uma política patriótica e de esquerda, como o PCP propõe.