- Nº 2542 (2022/08/18)

Bella Ciao

Argumentos

La Casa de Papel. O assalto está prestes a começar. O Professor e Berlim jantam e, depois, cantam Bella Ciao, com convicção. Segue a trama e, em tempo de fuga, canta-se de novo Bella Ciao como metáfora para a Liberdade. Dada a popularidade da série televisiva, a canção passa a ser um êxito e uma referência e é cantada, ou entoada, em festas, discotecas e, até, campos de futebol. Poucos dos que se servem dela sabem que estão a cantar uma das mais emblemáticas canções revolucionárias da História.

Bella Ciao terá sido composta em finais do século XIX e foi, originalmente, uma canção de trabalho que as mondine, ou mondinas (trabalhadoras rurais sazonais nas plantações de arroz) entoavam. Iam da Emília Romana e do Veneto para Vercelli, Novara e Pavia e aí faziam o seu trabalho arrancando as ervas daninhas que perturbavam o cultivo do arroz. Trabalhavam em condições de grande penúria e eram alvo de uma exploração esclavagista, que fez nascer e crescer uma revolta, primeiro contida e depois expressa, com os primeiros protestos a aparecerem nos campos de arroz de Molinella. Bella Ciao foi uma forma de cantar esse protesto.

Na canção denunciava-se o «trabalho duro sob o sol que nos derruba» e a presença do «Chefe», «de vara na mão e nós curvados(as) a trabalhar, um trabalho infame por pouco dinheiro. Mas chegará o dia em que todos trabalharemos em liberdade».

Se Bella Ciao era, então, uma canção de protesto, continuou a sê-lo mais tarde, tornando-se uma canção de contestação à Primeira Guerra Mundial e um hino da Resistência italiana contra o fascismo, o hino dos partigiani (resistentes organizados, como os partisans em França, por exemplo) na Segunda Grande Guerra. Mudou a letra, ficou a melodia e o espírito de luta que desde sempre a caracterizou.

Nascida para ser popular, passou a ser imprescindível nos festivais mundiais da juventude comunista da segunda metade do século XX e nas festas dos partidos comunistas de vários países, nos quais as delegações italianas a cantavam e cantam com a garantia antecipada de um êxito inevitável. Nas manifestações estudantis e operárias dos anos 60 e, mesmo, no Maio de 68, Bella Ciao compareceu sem falta. Foi gravada por Giovanna Daffini, uma ex-mondina e por Yves Montand de seu nome verdadeiro Ivo Livi, popular actor e cantor italiano naturalizado francês, de origem toscana. Ainda hoje é uma canção de culto para comunistas e outras esquerdas resistentes por esse mundo fora.

Quando, num estádio de futebol ou numa festa de anos, se canta Bella Ciao, os que o fazem, na sua maioria, não saberão que estão a convocar uma canção cuja letra diz que «e eu morrer como resistente, adeus minha querida, deves sepultar-me na montanha, à sombra de uma bela flor, e as pessoas que passarem dir-me-ão “que flor tão linda”. É esta a flor do homem da Resistência que morreu pela Liberdade!».

Nuno Gomes dos Santos