Não é verdade que Portugal esteja mais independente do ponto de vista energético

Para onde vai o país com a actual política energética?

Demétrio Alves

Não foi apenas a alta temperatura atmosférica a contribuir para os portugueses se sentirem escaldados: em matéria de energia as coisas estão em brasa desde o segundo trimestre de 2021.

Os preços finais nos mercados da electricidade, dos combustíveis derivados do petróleo e, ainda, do gás natural, evidenciam aumentos vertiginosos desde há cerca de dezoito meses, gerando grande impacto inflacionário com repercussão socioeconómica.

O preço médio anual da electricidade no mercado grossista, o MIBEL, foi, segundo a OMIE, de 33,99 €/MWh no ano 2020 passando para 112,01 €/MWh em 2021. No ano homólogo que terminou em Fevereiro 2022 a média já tinha chegado a 201,34 €/MWh. Em 12 meses, entre Abril de 2021 e Abril de 2022, o preço no MIBEL subiu 410%.

Na área dos combustíveis líquidos derivados do petróleo, a gasolina 95, viu o preço médio de venda ao público (PMVP), subir, entre Junho de 2021 e Junho de 2022, 50,7 cents/l (+30,3%). O gasóleo rodoviário o PMPV subiu 57,7 cents/l (+39,1%) num período homólogo.

Quanto ao gás natural (GN), no último trimestre de 2021 as cotações registaram uma grande volatilidade, principalmente no mês de Dezembro, com os preços a superarem os 200 USD/MWh na penúltima semana do ano e a descerem abruptamente na semana seguinte para os 80 USD/MWh. No MIBGAS registaram-se, em 2021, crescimentos relativos ao ano anterior, de 371% (para 55,5 USD/MWh).

O GN norte-americano HH teve um valor médio, em 2021, de 12,7 USD/MWh. A competitividade da economia americana tem beneficiado muito deste facto: dos cerca de 940 mil milhões de m3 produzidos, quase 90% são utilizados nos EUA. Este facto deveria ser tomado em consideração quando aparecem ideias quanto ao papel salvífico do GN americano: o excedente de 100 mil milhões, se viesse todo para a Europa, não cobriria mais do que 30% das necessidades!

Maximizar lucros

A notável agitação altista no mercado do gás natural estará, desta vez, relacionada com a retoma económica pós-COVID-19 e com diversos outros factores que contribuíram para o aumento de preços do gás natural nos mercados europeus, entre eles:

I. na Europa a retoma da produção industrial e das diversas actividades económicas não foi tão rápida como na China, nem ultrapassou níveis anteriores à crise pandémica, mas os stocks de diversos produtos, tendo atingido baixos níveis, tiveram que ser repostos de forma rápida e extraordinária;

II. o gás natural passou a substituir o carvão na produção de electricidade em diversos países europeus, devido às políticas energéticas voluntaristas de cariz climático.

Os crescimentos nos preços energéticos foram grandes e acontecem desde muito antes do início da guerra na Ucrânia.

Os mercados grossistas da electricidade – na Península Ibérica, o MIBEL - são construções artificiais da procura e oferta dominadas por monopólios (privados) e por redes empresariais oligopolistas, baseados numa perniciosa metodologia marginalista, adoptada e imposta pela CE, que maximiza os lucros e rendas das grandes corporações energéticas. No próprio mercado retalhista liberalizado há opacidade, com diversas jogatanas que iludem os consumidores. Ainda o que vale é a existência da tarifa em mercado regulado, apesar de maltratada pelo regulador.

Esbulhar os consumidores

Quanto aos combustíveis derivados do petróleo é conhecida a situação de esbulho permanente aos consumidores em função de um esquema baseado nas cotações (Índice Platts) relativas aos combustíveis destilados, que, num jogo combinado com as quotizações do petróleo bruto (por vezes em contraciclo), maximiza sistematicamente as margens de lucro, seja na refinação, seja na distribuição e comercialização. O caso português da Petrogal/GALP é escandalosamente paradigmático: 420 milhões de euros de lucro no primeiro semestre de 2022, um valor que compara com os 166 milhões registados no período homólogo anterior. Para este monopólio privado, que trocou uma refinaria por terreno destinado a futura especulação imobiliária, a guerra é uma boa oportunidade de negócio.

O gás natural, ao ter aumentado a num ritmo intenso, fez soar os alarmes porque pressionou asperamente diversas áreas energéticas e socioeconómicas vitais.

A relevância que o gás natural assumiu depois da guerra entre a Rússia e a Ucrânia se tornar mais visível, tem servido para tudo explicar, desde a inflação ao mal-estar das populações europeias.

Certo é que tal escalada, além do espectro da carência real de energia e de diversos bens e serviços vitais, colocaram a Europa numa grande tensão socioeconómica, política e, cada vez mais, financeira. A UE, ao ter-se colocado de cócoras perante as exigências americanas, materializadas através das colossais sanções a diversos vectores energéticos russos, pôs-se a jeito para receber o tiro fatal.

Será por isso que as lideranças europeias andam num virote de reuniões, cimeiras, viagens e diversificadas fanfarronices. Está provado que a energiewende alemã imposta depois na UE através de um dilúvio de subsídios às renováveis fez aumentar a dependência europeia de fontes de energia primária externas, incluindo do GN russo.

Fragilidades estruturais

O primeiro-ministro português, sempre sorridente, protagoniza de tal jeito a série de vitórias de Pirro que quase parece candidato a administrador dos cacos sobrantes. Porque, por este caminho, a falência é certa. Desaustinado, evidenciando alguns tiques autoritários, até já ralha com os seus parceiros europeus!

No final de Julho, António Costa elogiou, uma vez mais, o caminho energético português, aproveitando para criticar a «dependência energética dos outros face à Rússia», esquecendo a própria dependência, a crítica fragilidade estrutural energética e a pouca relevância da escala portuguesa.

«Hoje se temos esta capacidade de produção de energias renováveis é porque (...) as famílias e as empresas pagaram 17 mil milhões de euros para suportar o investimento extraordinário (...) para se dotar da capacidade de energias renováveis», confessou António Costa, socraticamente inebriado. E, num estilo grandiloquente, acrescentou, «tivessem os outros países europeus feito a aposta que fizemos e seguramente (...) não estariam a financiar o senhor Putin»!

Os sobrecustos que castigam os consumidores portugueses, em particular os domésticos e as pequenas e médias empresas, ficaram já, desde 2004, bem acima dos 25 mil milhões de euros, e os 17 mil milhões de euros para as FER não foram um investimento, mas sim uma transferência directa para cofres privados.

Não é verdade que Portugal esteja mais independente do ponto de vista energético: em 2019, imediatamente antes da COVID-19, as importações totais de energia primária cifraram-se em 24,268 milhares tep, quando em 2007 eram 24 539 milhares tep (semelhante). Quanto à importação de electricidade, muito variável de ano para ano, corresponderam a 500 milhares tep em 2010 e quase 700 milhares tep em 2019!

Em 2021 e 2022, a situação piorou no domínio da electricidade, estando o país numa situação difícil: tem de importar grande quantidade de electricidade, além do GN para a produzir, isto tudo na ordem de 60% das necessidades. E, se o Outono/Inverno forem pouco propícios, podem vir a ocorrer disrupções no abastecimento eléctrico que, a acontecerem, não terão nada a ver com a Rússia nem com a guerra na Ucrânia.

Submissão à UE

O Governo tem conduzido a política energética em inteira subordinação às exorbitantes metas climáticas da UE, comprometendo a autonomia energética portuguesa, e, repare-se, não conseguindo melhorias significativas quanto às emissões de gases com efeito de estufa (GEE): em 1990, o sector da energia emitiu 40,661 kt eq CO2, e, em 2017 e 2019, esteve, respectivamente nos 51,780 e 44,415 kt eq CO2!

O que o primeiro-ministro disse no Tâmega no dia 18 de Julho, que «este empreendimento hidroeléctrico produz mais electricidade do que a central de Sines», e, ainda, que «vamos poupar…muitos milhões de …petróleo com a electricidade ...», correspondeu a descuido ou a inverdade. Desde logo porque não se usam derivados do petróleo para produzir electricidade, em termos do SEN/RESP, há mais de quatro décadas!

A central a carvão de Sines, apressadamente encerrada e que agora faz tanta falta, podia produzir cerca de 5,000 GWh por ano.

As centrais hidroeléctricas de Gouvães e Gaivões, no Alto Tâmega, com uma potência total instalada de 1,150 MW, têm, de facto, uma baixa produção líquida de electricidade (cerca de 500 GWh/ano médio). Ou seja, só em Sines poder-se-ia produzir dez vezes mais electricidade!

O adicional que pode ser produzido no Tâmega depende da bombagem de água, a tal designada «gigabateria», que, aliás, é um «serviço de sistema» que foi dado de borla às empresas produtoras, à margem das concessões “normais”, sem qualquer pagamento extra (ilegalidade?), e que significa um negócio colossal: importa-se electricidade para elevar água e, depois, quando a energia é mais cara no referido mercado grossista, produz-se e vende-se electricidade a partir da água bombada! Mais lucros trazidos pelo vento (no caso, pela água).

Os rios portugueses foram transformados num “giganegócio” privado, e, também por essa razão, alguns deles estão com os níveis de água tão baixos. Não é só devido à fraca hidraulicidade, até porque essa não é novidade!

O governo do Partido Socialista, que até 2020 desvalorizou as iniciativas de política energéticas espanholas, teve que se lhes atrelar no caso do mecanismo ibérico de plafonamento do preço do gás natural usado na produção de electricidade. Já quanto a outra iniciativa de Madrid - lançamento de um imposto ético sobre os lucros oportunistas das empresas energéticas - o governo mostra-se mais encolhido: António Costa diz que logo se verá!

Fiscalização, precisa-se

O mecanismo ibérico para controlo dos efeitos do preço do GN usado na produção de electricidade (a parte do GN usado nas indústrias e residências ficou de fora!) surgiu não só devido à subida de preço desta energia primária importada, mas, fundamentalmente, para atenuar o pernicioso mecanismo marginalista imposto no mercado grossista. Recomenda-se um seguimento institucional atento e muita fiscalização, porque ainda existe significativa nebulosidade quanto aos seus contornos e consequências finais. É que, se ele foi criado para baixar o preço da electricidade cobrado aos consumidores, pergunta-se, por que razão ele não baixa por exemplo, nas horas nocturnas e madrugadas?

Há bem mais de um ano que é visível a governamentalização explícita da ERSE, situação que não abona em favor da muito louvada independência do regulador. Os truques políticos usados circunstancialmente para alisar ou aliviar as tarifas em certos momentos, acabam, se não estiverem alicerçados em medidas estruturantes seguras, por vir a gerar problemas posteriores.

Há, agora, muitos gestores e especialistas cuja capacidade de análise hibernou durante anos, finalmente iluminados quanto ao anacrónico mercado da electricidade. Até Bruxelas diz que irá começar a revê-lo lá para 2023. Mas, será necessária muita atenção porque existem indícios de que se ensaiam fórmulas cujo resultado expectável se pode antecipar: partindo do altíssimo nível a que chegaram os preços, a «correcção em baixa» pode vir a deixar os preços muito acima daquilo do que era praticado até 2020.

Os monopólios energéticos privados e as redes empresariais oligopolistas são entes viciados no lucro oportunista: só retornados às esfera pública poderão deixar de ser prejudiciais, possibilitando-se planeamento energético democrático ao serviço dos interesses do País.