ROSA DE HIROSHIMA

Manuel Pires da Rocha

Rosa de Hiroshima é uma canção pacifista mas não é uma canção apaziguadora. É antes um manifesto de urgente divulgação

Num mundo em que a guerra é uma linha ascendente nos gráficos de resultados do complexo militar-industrial dos EUA e seus aliados, o Capital destina vasto orçamento à produção dos chamados «conteúdos» que instalam no espaço mediático a mentira no lugar da História. Nem sequer os crimes presenciados, filmados, relatados e mostrados se livram do desvirtuamento. Julgam os donos dos meios de desinformação que o caminho mais curto para normalizar a barbárie será converter cidadãos em espectadores receptivos. Para isso destinam abundantes meios à repetição ad nauseam das falsidades convenientes; por isso empregam-se a fundo no silenciamento de tudo o que não seja «pensamento único» autorizado.

O fogo não tem glamour

A 6 de Agosto de 1945, às oito e um quarto da manhã, um bombardeiro B-29 da Força Aérea dos EUA, voando a 10 mil metros de altitude, largou sobre a cidade “escolhida” de Hiroshima uma bomba atómica de Urânio-235. O engenho explodiu a 600 metros do solo, arrastando ali mesmo no fogo que se acendeu cerca de 80 mil civis, matando mais 60 mil nos dias a seguir. O sopro equivalente a 13 quilo-toneladas de TNT reduziu a pó 90% dos edifícios e infra-estruturas daquela cidade com cerca de 300 mil habitantes, deixando na História da Humanidade uma profunda cicatriz. Três dias depois, o povo de Nagasáqui seria arrastado num fogo semelhante, igualmente mortal.

Logo chegariam os filmes, as entrevistas glamourosas aos executores da ordem, as poses junto a Enola Gay (o avião), os retratos de Little Boy (a Bomba «que reduziu a cinza a carne das crianças» de que fala o poema de Sophia). Mas nem sempre os produtos da macabra memorabilia foram eficazes no apagamento do acto de exibição de força com que os EUA se quiseram mostrar ao mundo (e em especial à União Soviética) super-heróis iguais aos da Marvel.

A Anti-Rosa

Rosa de Hiroshima é prova de que o apagamento da História nem sempre está ao alcance de Hollywood (e demais protagonistas da batalha ideológica em nome do Capital). O poema é de Vinicius de Moraes, e está inserido na Antologia Poética publicada em 1954. O compositor brasileiro Gerson Conrad viria, em 1973, a somar-lhe a melodia que faria de Rosa de Hiroshima um dos mais difundidos hinos pacifistas em língua portuguesa. Conrad construiu a canção para os Secos e Molhados, o grupo musical que partilhava com João Ricardo e Ney Matogrosso. Secos e Molhados apresentava ao público uma proposta musical em que Ney Matogrosso dava voz a uma mistura da canção urbana brasileira com impressões do folclore português, obras de poetas dos dois lados do oceano ombreando com textos de oposição à ditadura brasileira. O rock pesado, que era a linguagem sonora de Secos e Molhados, surgia em palco apresentado por músicos de rosto maquilhado, envergando roupas de desenho desafiador. Rosa de Hiroshima foi incluída no álbum Secos e Molhados, editado em 1973 pela editora Continental, reproduzindo em cerca de um milhão de LP as palavras (os apelos) «Pensem nas crianças, mudas, telepáticas/ Pensem nas meninas, cegas, inexatas/ Pensem nas mulheres, rotas alteradas/ Pensem nas feridas, como rosas cálidas».

Música de intervenção

Rosa de Hiroshima sobreviveria a Secos e Molhados (dissolvido em 1974). Cantada até hoje por Ney Matogrosso, é uma canção pacifista mas não é uma canção apaziguadora. É antes um manifesto de urgente divulgação. Também porque este é o tempo em que um alto dirigente mundial se atreve, em pleno acto de homenagem às vítimas de Hiroshima, a omitir a referência à mão (do governo dos EUA) que lançou – contra o corpo da Humanidade - a «anti-rosa atómica / Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada».




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