O combate vital pela paz e o desarmamento

Gustavo Carneiro

Quando passam 77 anos sobre os bom­bar­de­a­mentos nu­cle­ares norte-ame­ri­canos sobre Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui, a 6 e 9 de Agosto de 1945, re­cor­damos o con­texto dos acon­te­ci­mentos, a fria bru­ta­li­dade do horror nu­clear, a es­ca­lada ar­ma­men­tista que pro­vocou e a luta que pros­segue contra o im­pe­ri­a­lismo e a guerra, pela paz e o de­sar­ma­mento – geral, si­mul­tâneo e con­tro­lado.

Sempre foi a luta que obrigou o im­pe­ri­a­lismo a re­cuar nos seus ím­petos mais agres­sivos


O con­texto

No início de Agosto de 1945, o nazi-fas­cismo fora já der­ro­tado na Eu­ropa: em Maio, com Hi­tler morto e Berlim to­mada pelo Exér­cito Ver­melho, as­si­nara-se a ren­dição in­con­di­ci­onal. Co­me­çava a re­cons­trução do Velho Con­ti­nente, mas em moldes to­tal­mente novos, dada a força e pres­tígio com que a URSS, os co­mu­nistas e o mo­vi­mento ope­rário e po­pular saíram do con­flito graças ao papel de­ter­mi­nante que de­sem­pe­nharam na Vi­tória.

As aten­ções vol­tavam-se então para a Ásia e para o Pa­cí­fico, onde ainda se com­batia. Apesar das pe­sadas perdas que so­friam às mãos das tropas norte-ame­ri­canas e da re­sis­tência pa­trió­tica na China, na Co­reia ou na In­do­china, as forças im­pe­riais ja­po­nesas ven­diam cara a der­rota, que com a en­trada da União So­vié­tica na guerra contra o mi­li­ta­rismo ja­ponês se tor­nava ine­vi­tável: a 9 de Agosto, três meses exactos após a ren­dição alemã (como fi­cara com­bi­nado em Fe­ve­reiro, na Con­fe­rência de Ialta), um mi­lhão de sol­dados do Exér­cito Ver­melho, trans­fe­ridos da frente eu­ro­peia, mar­cham sobre a Man­chúria, li­ber­tando-a, assim como a parte da Mon­gólia e da Co­reia.

É neste con­texto que o pre­si­dente norte-ame­ri­cano Harry Truman (que su­ce­dera a Frank De­lano Ro­o­se­velt, fa­le­cido pouco antes) au­to­riza a uti­li­zação das recém-cri­adas bombas ató­micas sobre as ci­dades ja­po­nesas de Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui.

Para al­guns, o re­curso à arma ató­mica foi um dos úl­timos actos da Se­gunda Guerra Mun­dial: a ren­dição do Japão foi de­cla­rada a 15 de Agosto e ofi­ci­al­mente as­si­nada a 2 de Se­tembro. Mas há também quem a veja como o pri­meiro da cha­mada Guerra Fria, com a qual o im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano pro­curou travar o im­pe­tuoso mo­vi­mento li­ber­tador que se se­guiu à der­rota do nazi-fas­cismo na Se­gunda Guerra Mun­dial.

O horror nu­clear
Wil­fred Bur­chett foi o pri­meiro jor­na­lista oci­dental a vi­sitar Hi­ro­xima de­pois do bom­bar­de­a­mento. O seu ar­tigo Es­crevo isto como um aviso para o mundo, pu­bli­cado a 5 de Se­tembro de 1945 no Daily Ex­press, de Lon­dres, re­velou o ini­ma­gi­nável: «30 dias após a pri­meira bomba ató­mica ter des­truído a ci­dade e aba­lado o mundo, as pes­soas ainda estão a morrer, mis­te­riosa e hor­ri­vel­mente – pes­soas que não foram fe­ridas pelo ca­ta­clismo – de algo des­co­nhe­cido que só posso des­crever como praga atómica. (…) olhando em redor e por 25, talvez 30 mi­lhas [40 e 48 qui­ló­me­tros, apro­xi­ma­da­mente], mal se con­segue ver um edi­fício.»

Se Bur­chett pecou foi por de­feito, e não por falta de arte, mas pela im­pos­si­bi­li­dade de des­crever em pa­la­vras se­me­lhante horror. Até final de 1945, ti­nham mor­rido 140 mil pes­soas em Hi­ro­xima e 70 mil em Na­ga­sáqui, civis na sua imensa mai­oria: grande parte in­ci­ne­rada no mo­mento das ex­plo­sões e os res­tantes nas horas, dias, se­manas e meses se­guintes – so­ço­brando aos fe­ri­mentos, às quei­ma­duras, à ra­di­ação. Ainda hoje, mais de sete dé­cadas pas­sadas, a in­ci­dência de do­enças on­co­ló­gicas e mal­for­ma­ções é, na­quelas duas ci­dades, par­ti­cu­lar­mente ele­vada.

Ao longo dos anos, muitos dos so­bre­vi­ventes – co­nhe­cidos no Japão por hi­ba­kushas – foram con­tando as suas his­tó­rias, como forma de im­pedir a todo o custo que se­me­lhante horror possa al­guma vez re­petir-se.

Um deles é Jong-keun Lee, de Hi­ro­xima, que re­cor­dava desse fa­tí­dico 6 de Agosto a «es­tranha luz ama­rela» que lhe feriu os olhos. Quando fi­nal­mente os con­se­guiu re­a­brir, viu o que até há mo­mentos era uma bela manhã de verão en­go­lida pela es­cu­ridão: «o ar es­tava cheio de po­eira das casas des­truídas pela ex­plosão».

Já Reiko Ya­mada lem­brava-se da «chuva que co­meçou a cair e que mais tarde sou­bemos ser a ra­di­o­ac­tiva black rain [chuva negra]. Ani­nhámo-nos uns nos ou­tros para nos man­termos quentes, mas tre­míamos de frio. O sol pa­recia ter de­sa­pa­re­cido por de­trás das pe­sadas nu­vens cin­zentas que co­briam o céu». Ao con­trário de muitos dos seus amigos, que com ela pas­se­avam por Hi­ro­xima no mo­mento da ex­plosão, Shi­geko Sa­sa­mori so­bre­viveu, mas não sem se­quelas: «Um terço do meu corpo ficou quei­mado. Todo o meu rosto, pes­coço, costas, me­tade do meu peito, om­bros, braços e ambas as mãos.»

Ya­suaki Ya­mashita, por seu lado, re­feria-se ao «in­ferno de morte e des­truição» a que Na­ga­sáqui ficou re­du­zido. E lembra-se bem da fome: «não havia co­mida e es­tá­vamos es­fo­me­ados». Quando, anos mais tarde, tra­ba­lhou no Hos­pital da Bomba Ató­mica de Na­ga­sáqui, viu muita gente «ainda a so­frer com os efeitos das quei­ma­duras e da ra­di­ação».

Como estes, muitos ou­tros re­latos tes­te­mu­nham o horror ali vi­vido – um au­tên­tico crime que até hoje con­tinua im­pune e cuja sombra nunca deixou de pairar sobre a Hu­ma­ni­dade.

A es­ca­lada
Dando razão aos que in­ter­pre­taram os bom­bar­de­a­mentos ató­micos sobre Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui como sendo avisos di­ri­gidos so­bre­tudo à União So­vié­tica, o im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano pro­curou usar a seu favor o mo­no­pólio da arma ató­mica e a ameaça da sua uti­li­zação para impor os seus in­te­resses. Saídos da guerra pra­ti­ca­mente in­tactos e como a maior po­tência eco­nó­mica mun­dial, os EUA apos­tavam no po­derio mi­litar para manter e alargar o seu do­mínio: o re­forço da pre­sença mi­litar na Eu­ropa, a cri­ação da NATO, a pro­lon­gada ocu­pação do Japão e a guerra na Co­reia (1950/​1953), tes­te­mu­nham essa am­bição he­ge­mó­nica e vo­cação agres­siva, que nunca aban­do­naria.

Sobre a Co­reia, aliás, não será de­mais lem­brar que os norte-ame­ri­canos lan­çaram aí mais bombas do que em toda a guerra no Pa­cí­fico e que che­garam a pon­derar, ao mais alto nível da sua ad­mi­nis­tração, a uti­li­zação de armas ató­micas – não apenas sobre o Norte da Co­reia, mas também na China e em certas re­giões da União So­vié­tica.

Se é certo que os EUA per­deram o mo­no­pólio nu­clear em 1949, seria uma vez mais por sua ini­ci­a­tiva que em breve se daria um novo e de­ci­sivo salto na cor­rida ar­ma­men­tista, com o en­saio da pri­meira bomba ter­mo­nu­clear, de Hi­dro­génio, 500 vezes mais po­tente do que aquela que ar­rasou Na­ga­sáqui.

Nas dé­cadas se­guintes – e até hoje – o im­pe­ri­a­lismo avançou o quanto pôde, in­ten­si­fi­cando a es­ca­lada sempre que pos­sível e só re­cu­ando quando a tal foi obri­gado. Provam-no os acordos de de­sa­nu­vi­a­mento e de­sar­ma­mento as­si­nados com a União So­vié­tica nos anos 70 e 80 do sé­culo XX, aban­do­nados assim que a cor­re­lação de forças lhe voltou a ser fa­vo­rável: o Tra­tado sobre Mís­seis An­ti­ba­lís­ticos e o Tra­tado sobre Forças Nu­cle­ares de Al­cance In­ter­médio são apenas dois exem­plos.

A ac­tu­a­li­dade
São imensos os riscos que de­correm dos ac­tuais ar­se­nais nu­cle­ares, in­fi­ni­ta­mente su­pe­ri­ores aos que ar­ra­saram as duas ci­dades ja­po­nesas: se­gundo os ci­en­tistas, a uti­li­zação de uma pe­quena parte das armas nu­cle­ares exis­tentes ame­a­çaria se­ri­a­mente a so­bre­vi­vência da Hu­ma­ni­dade e teria gra­vís­simos e pro­lon­gados efeitos sobre o meio am­bi­ente.

Nove Es­tados pos­suem armas nu­cle­ares: EUA, Fe­de­ração Russa, Reino Unido, França, China, Índia, Pa­quistão, Is­rael e RPD da Co­reia. Das 13 mil ogivas exis­tentes (2000 das quais em es­tado de alerta), cerca de 12 mil di­videm-se entre EUA e Fe­de­ração Russa, com os pri­meiros a terem muitas delas es­pa­lhadas pelo mundo, em bases mi­li­tares e es­qua­dras na­vais. Cinco ou­tros países aco­lhem a ins­ta­lação de armas nu­cle­ares norte-ame­ri­canas nos seus ter­ri­tó­rios – Tur­quia, Itália, Bél­gica, Ale­manha e Países Baixos – e muitos ainda os que, como Por­tugal, in­te­gram ali­anças mi­li­tares com vo­cação nu­clear, como a NATO.

Os EUA, que gastam mais no seu ar­senal nu­clear do que todos os ou­tros países juntos, pre­vêem na sua dou­trina mi­litar a uti­li­zação deste tipo de ar­ma­mento num pri­meiro ataque, dito pre­ven­tivo, e nos úl­timos anos têm pro­cu­rado romper a pa­ri­dade nu­clear com a Rússia, no­me­a­da­mente através da ins­ta­lação dos cha­mados sis­temas an­ti­míssil no Leste da Eu­ropa e no Ex­tremo Ori­ente.

Uma vez mais, a es­ca­lada ar­ma­men­tista leva à ca­na­li­zação de im­pres­si­o­nantes e cres­centes re­cursos para a guerra e o ar­ma­mento, in­cluindo nu­clear – que de­pois faltam para a saúde, a edu­cação, a pro­tecção so­cial.

Se a di­mensão e po­derio dos ac­tuais ar­se­nais nu­cle­ares cons­ti­tuem por si só um ver­da­deiro barril de pól­vora, a agres­si­vi­dade da ofen­siva do im­pe­ri­a­lismo e as suas im­pre­vi­sí­veis con­sequên­cias podem vir a ser a faísca...

A luta
«Exi­gimos a in­ter­dição ab­so­luta da arma ató­mica, arma de terror e de ex­ter­mínio em massa de po­pu­la­ções» – assim co­me­çava o Apelo de Es­to­colmo, lan­çado em Março de 1950 pelo que seria meses mais tarde o Con­selho Mun­dial da Paz. Reu­nindo cen­tenas de mi­lhões de subs­cri­ções em todo o mundo, ra­pi­da­mente se tor­naria na maior pe­tição da His­tória. Em Por­tugal, muitos foram presos pelo fas­cismo por apoi­arem esta cam­panha, mas mesmo assim foram re­co­lhidas mi­lhares de as­si­na­turas.

Esta es­teve longe de ser a única cam­panha ou mo­vi­men­tação pelo fim das armas nu­cle­ares re­a­li­zada ao longo dos anos. Im­pul­si­o­nadas por or­ga­ni­za­ções e sec­tores di­versos, foram muitas as que le­van­taram esta ban­deira, li­mi­tando-se umas apenas a essa exi­gência, in­te­grando-a ou­tras na luta mais geral contra o im­pe­ri­a­lismo e a guerra. Os co­mu­nistas, e em par­ti­cular o PCP, es­ti­veram sempre na pri­meira linha desta ba­talha.

As mo­bi­li­za­ções pela paz, que ob­jec­ti­va­mente se ali­avam à luta pela de­mo­cracia, a li­ber­tação na­ci­onal e o so­ci­a­lismo que se tra­vava um pouco por todo o mundo, for­çaram por vezes o im­pe­ri­a­lismo a re­frear os seus ím­petos mais agres­sivos – e mesmo a re­cuar. A re­ti­rada ou re­dução de ar­ma­mentos e a ce­le­bração de tra­tados de de­sa­nu­vi­a­mento e de­sar­ma­mento nunca foram op­ções do im­pe­ri­a­lismo, mas sim re­cuos deste ar­ran­cados pela luta dos povos. E assim con­tinua a ser.

Na Re­so­lução Po­lí­tica do XXI Con­gresso do PCP, re­a­li­zado no final de 2020, lê-se: «Pe­rante os enormes pe­rigos para a Hu­ma­ni­dade que re­pre­sentam a cor­rida ar­ma­men­tista, o in­cum­pri­mento e de­núncia uni­la­teral de acordos de de­sar­ma­mento e de li­mi­tação de ar­ma­mento nu­clear, o des­res­peito pelos prin­cí­pios da Carta das Na­ções Unidas e do di­reito in­ter­na­ci­onal, a mul­ti­pli­cação de focos de tensão e de­ses­ta­bi­li­zação, das ame­aças e guerras de agressão – que são ex­pressão da es­ca­lada de con­fronto pro­mo­vida pelos EUA e seus ali­ados –, a luta pela paz, pelo de­sar­ma­mento e, em par­ti­cular, contra as agres­sões da NATO e pela sua dis­so­lução, re­veste-se da maior im­por­tância.»