O combate vital pela paz e o desarmamento
Quando passam 77 anos sobre os bombardeamentos nucleares norte-americanos sobre Hiroxima e Nagasáqui, a 6 e 9 de Agosto de 1945, recordamos o contexto dos acontecimentos, a fria brutalidade do horror nuclear, a escalada armamentista que provocou e a luta que prossegue contra o imperialismo e a guerra, pela paz e o desarmamento – geral, simultâneo e controlado.
Sempre foi a luta que obrigou o imperialismo a recuar nos seus ímpetos mais agressivos
O contexto
No início de Agosto de 1945, o nazi-fascismo fora já derrotado na Europa: em Maio, com Hitler morto e Berlim tomada pelo Exército Vermelho, assinara-se a rendição incondicional. Começava a reconstrução do Velho Continente, mas em moldes totalmente novos, dada a força e prestígio com que a URSS, os comunistas e o movimento operário e popular saíram do conflito graças ao papel determinante que desempenharam na Vitória.
As atenções voltavam-se então para a Ásia e para o Pacífico, onde ainda se combatia. Apesar das pesadas perdas que sofriam às mãos das tropas norte-americanas e da resistência patriótica na China, na Coreia ou na Indochina, as forças imperiais japonesas vendiam cara a derrota, que com a entrada da União Soviética na guerra contra o militarismo japonês se tornava inevitável: a 9 de Agosto, três meses exactos após a rendição alemã (como ficara combinado em Fevereiro, na Conferência de Ialta), um milhão de soldados do Exército Vermelho, transferidos da frente europeia, marcham sobre a Manchúria, libertando-a, assim como a parte da Mongólia e da Coreia.
É neste contexto que o presidente norte-americano Harry Truman (que sucedera a Frank Delano Roosevelt, falecido pouco antes) autoriza a utilização das recém-criadas bombas atómicas sobre as cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui.
Para alguns, o recurso à arma atómica foi um dos últimos actos da Segunda Guerra Mundial: a rendição do Japão foi declarada a 15 de Agosto e oficialmente assinada a 2 de Setembro. Mas há também quem a veja como o primeiro da chamada Guerra Fria, com a qual o imperialismo norte-americano procurou travar o impetuoso movimento libertador que se seguiu à derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial.
O horror nuclear
Wilfred Burchett foi o primeiro jornalista ocidental a visitar Hiroxima depois do bombardeamento. O seu artigo Escrevo isto como um aviso para o mundo, publicado a 5 de Setembro de 1945 no Daily Express, de Londres, revelou o inimaginável: «30 dias após a primeira bomba atómica ter destruído a cidade e abalado o mundo, as pessoas ainda estão a morrer, misteriosa e horrivelmente – pessoas que não foram feridas pelo cataclismo – de algo desconhecido que só posso descrever como praga atómica. (…) olhando em redor e por 25, talvez 30 milhas [40 e 48 quilómetros, aproximadamente], mal se consegue ver um edifício.»
Se Burchett pecou foi por defeito, e não por falta de arte, mas pela impossibilidade de descrever em palavras semelhante horror. Até final de 1945, tinham morrido 140 mil pessoas em Hiroxima e 70 mil em Nagasáqui, civis na sua imensa maioria: grande parte incinerada no momento das explosões e os restantes nas horas, dias, semanas e meses seguintes – soçobrando aos ferimentos, às queimaduras, à radiação. Ainda hoje, mais de sete décadas passadas, a incidência de doenças oncológicas e malformações é, naquelas duas cidades, particularmente elevada.
Ao longo dos anos, muitos dos sobreviventes – conhecidos no Japão por hibakushas – foram contando as suas histórias, como forma de impedir a todo o custo que semelhante horror possa alguma vez repetir-se.
Um deles é Jong-keun Lee, de Hiroxima, que recordava desse fatídico 6 de Agosto a «estranha luz amarela» que lhe feriu os olhos. Quando finalmente os conseguiu reabrir, viu o que até há momentos era uma bela manhã de verão engolida pela escuridão: «o ar estava cheio de poeira das casas destruídas pela explosão».
Já Reiko Yamada lembrava-se da «chuva que começou a cair e que mais tarde soubemos ser a radioactiva black rain [chuva negra]. Aninhámo-nos uns nos outros para nos mantermos quentes, mas tremíamos de frio. O sol parecia ter desaparecido por detrás das pesadas nuvens cinzentas que cobriam o céu». Ao contrário de muitos dos seus amigos, que com ela passeavam por Hiroxima no momento da explosão, Shigeko Sasamori sobreviveu, mas não sem sequelas: «Um terço do meu corpo ficou queimado. Todo o meu rosto, pescoço, costas, metade do meu peito, ombros, braços e ambas as mãos.»
Yasuaki Yamashita, por seu lado, referia-se ao «inferno de morte e destruição» a que Nagasáqui ficou reduzido. E lembra-se bem da fome: «não havia comida e estávamos esfomeados». Quando, anos mais tarde, trabalhou no Hospital da Bomba Atómica de Nagasáqui, viu muita gente «ainda a sofrer com os efeitos das queimaduras e da radiação».
Como estes, muitos outros relatos testemunham o horror ali vivido – um autêntico crime que até hoje continua impune e cuja sombra nunca deixou de pairar sobre a Humanidade.
A escalada
Dando razão aos que interpretaram os bombardeamentos atómicos sobre Hiroxima e Nagasáqui como sendo avisos dirigidos sobretudo à União Soviética, o imperialismo norte-americano procurou usar a seu favor o monopólio da arma atómica e a ameaça da sua utilização para impor os seus interesses. Saídos da guerra praticamente intactos e como a maior potência económica mundial, os EUA apostavam no poderio militar para manter e alargar o seu domínio: o reforço da presença militar na Europa, a criação da NATO, a prolongada ocupação do Japão e a guerra na Coreia (1950/1953), testemunham essa ambição hegemónica e vocação agressiva, que nunca abandonaria.
Sobre a Coreia, aliás, não será demais lembrar que os norte-americanos lançaram aí mais bombas do que em toda a guerra no Pacífico e que chegaram a ponderar, ao mais alto nível da sua administração, a utilização de armas atómicas – não apenas sobre o Norte da Coreia, mas também na China e em certas regiões da União Soviética.
Se é certo que os EUA perderam o monopólio nuclear em 1949, seria uma vez mais por sua iniciativa que em breve se daria um novo e decisivo salto na corrida armamentista, com o ensaio da primeira bomba termonuclear, de Hidrogénio, 500 vezes mais potente do que aquela que arrasou Nagasáqui.
Nas décadas seguintes – e até hoje – o imperialismo avançou o quanto pôde, intensificando a escalada sempre que possível e só recuando quando a tal foi obrigado. Provam-no os acordos de desanuviamento e desarmamento assinados com a União Soviética nos anos 70 e 80 do século XX, abandonados assim que a correlação de forças lhe voltou a ser favorável: o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos e o Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio são apenas dois exemplos.
A actualidade
São imensos os riscos que decorrem dos actuais arsenais nucleares, infinitamente superiores aos que arrasaram as duas cidades japonesas: segundo os cientistas, a utilização de uma pequena parte das armas nucleares existentes ameaçaria seriamente a sobrevivência da Humanidade e teria gravíssimos e prolongados efeitos sobre o meio ambiente.
Nove Estados possuem armas nucleares: EUA, Federação Russa, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Israel e RPD da Coreia. Das 13 mil ogivas existentes (2000 das quais em estado de alerta), cerca de 12 mil dividem-se entre EUA e Federação Russa, com os primeiros a terem muitas delas espalhadas pelo mundo, em bases militares e esquadras navais. Cinco outros países acolhem a instalação de armas nucleares norte-americanas nos seus territórios – Turquia, Itália, Bélgica, Alemanha e Países Baixos – e muitos ainda os que, como Portugal, integram alianças militares com vocação nuclear, como a NATO.
Os EUA, que gastam mais no seu arsenal nuclear do que todos os outros países juntos, prevêem na sua doutrina militar a utilização deste tipo de armamento num primeiro ataque, dito preventivo, e nos últimos anos têm procurado romper a paridade nuclear com a Rússia, nomeadamente através da instalação dos chamados sistemas antimíssil no Leste da Europa e no Extremo Oriente.
Uma vez mais, a escalada armamentista leva à canalização de impressionantes e crescentes recursos para a guerra e o armamento, incluindo nuclear – que depois faltam para a saúde, a educação, a protecção social.
Se a dimensão e poderio dos actuais arsenais nucleares constituem por si só um verdadeiro barril de pólvora, a agressividade da ofensiva do imperialismo e as suas imprevisíveis consequências podem vir a ser a faísca...
A luta
«Exigimos a interdição absoluta da arma atómica, arma de terror e de extermínio em massa de populações» – assim começava o Apelo de Estocolmo, lançado em Março de 1950 pelo que seria meses mais tarde o Conselho Mundial da Paz. Reunindo centenas de milhões de subscrições em todo o mundo, rapidamente se tornaria na maior petição da História. Em Portugal, muitos foram presos pelo fascismo por apoiarem esta campanha, mas mesmo assim foram recolhidas milhares de assinaturas.
Esta esteve longe de ser a única campanha ou movimentação pelo fim das armas nucleares realizada ao longo dos anos. Impulsionadas por organizações e sectores diversos, foram muitas as que levantaram esta bandeira, limitando-se umas apenas a essa exigência, integrando-a outras na luta mais geral contra o imperialismo e a guerra. Os comunistas, e em particular o PCP, estiveram sempre na primeira linha desta batalha.
As mobilizações pela paz, que objectivamente se aliavam à luta pela democracia, a libertação nacional e o socialismo que se travava um pouco por todo o mundo, forçaram por vezes o imperialismo a refrear os seus ímpetos mais agressivos – e mesmo a recuar. A retirada ou redução de armamentos e a celebração de tratados de desanuviamento e desarmamento nunca foram opções do imperialismo, mas sim recuos deste arrancados pela luta dos povos. E assim continua a ser.
Na Resolução Política do XXI Congresso do PCP, realizado no final de 2020, lê-se: «Perante os enormes perigos para a Humanidade que representam a corrida armamentista, o incumprimento e denúncia unilateral de acordos de desarmamento e de limitação de armamento nuclear, o desrespeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional, a multiplicação de focos de tensão e desestabilização, das ameaças e guerras de agressão – que são expressão da escalada de confronto promovida pelos EUA e seus aliados –, a luta pela paz, pelo desarmamento e, em particular, contra as agressões da NATO e pela sua dissolução, reveste-se da maior importância.»