Não há dificuldade que Cuba não seja capaz de superar
José Fidel Santana Nuñez é primeiro vice-ministro da Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente da República de Cuba e, durante anos, trabalhou nas áreas da energia nuclear e do desarmamento. De passagem por Portugal, onde participou na Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, concedeu uma entrevista ao Avante!, na qual evidenciou a prioridade que a Revolução concedeu desde sempre à inovação e ao conhecimento, fundamentais para o desenvolvimento soberano do país.
«Estamos a implementar um sistema de governo baseado na Ciência e na Inovação»
Quais as principais preocupações ambientais de Cuba?
As preocupações ambientais de Cuba coincidem, no essencial, com as prioridades do mundo. Estamos confrontados com o mesmo cenário de alterações climáticas, de contaminação dos oceanos por plástico, de perda da biodiversidade. Como país insular, estamos também muito vulneráveis à subida do nível das águas do mar, com as consequências ao nível da infiltração salina dos lençóis freáticos.
Tudo isto encontra-se contemplado num plano de Estado de combate às alterações climáticas, sustentado em 15 ou 20 anos de investigação científica, a que chamámos Tarefa Vida. Nesse plano define-se os territórios e os sectores prioritários, como o energético e o agro-alimentar, estratégicos e particularmente sensíveis a estas questões, e identifica-se eixos de acção estratégicos e medidas para os concretizar.
Toda a população participa na execução da Tarefa Vida. Cada município tem o seu próprio plano, com acções e orientações bem definidas. O controlo é feito ao mais alto nível, com o próprio Presidente da República a verificar sistematicamente como a sociedade no seu conjunto responde a estas questões.
Estamos igualmente a apostar na economia circular, para reduzir resíduos, e a protecção da biodiversidade encontra-se juridicamente consagrada.
Já em 1992, o Comandante Fidel Castro fez um discurso memorável no qual denunciou a degradação ambiental provocada pelo capitalismo e os perigos para a Humanidade que daí decorriam. Muitos consideraram, na altura, esse discurso «catastrofista»…
O que hoje estamos a fazer é consequente com o legado de Fidel e a direcção do país desde a Revolução.
De que modo o ilegal e criminoso bloqueio económico, comercial e financeiro imposto pelo EUA prejudica as metas traçadas por Cuba nestas áreas?
Para nós, é claro o que temos de fazer e como temos de o fazer! E o bloqueio é o obstáculo fundamental a que o façamos, é a principal barreira ao nosso desenvolvimento. É graças ao bloqueio que não temos acesso a algumas tecnologias e financiamentos, essenciais para qualquer país, ao mesmo tempo que nos cria dificuldades para desenvolvermos capacidades próprias.
Somos obrigados a apostar na solidariedade e a procurar alternativas que não seriam as mais evidentes. Mas o bloqueio persegue quem nos ajuda, quem nos venda tecnologia, quem se disponha a financiar-nos. Como há muito dizemos, o objectivo de sucessivas administrações norte-americanas, com o bloqueio, é asfixiar a Revolução, criando dificuldades aos cubanos em todos os aspectos da sua vida. Tem uma vocação quase genocida...
Aliás, durante o período mais crítico da COVID-19, o bloqueio privou-nos de vacinas e dos financiamentos necessários para responder à pandemia. Não nos foi concedida nenhuma facilidade nesse período difícil, antes pelo contrário.
Mas Cuba produziu as suas próprias vacinas...
Sim, graças à nossa capacidade científica e de inovação e ao impulso e cooperação do Governo conseguimos produzir cinco vacinas, duas das quais reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde. Estamos ao nível dos melhores do mundo. Outros países com dez vezes mais recursos não conseguiram resultados tão relevantes… E nós conseguimos, com muita criatividade e com as capacidades próprias criadas pela Revolução.
Como é isso possível? Como pode um pequeno país, ainda para mais bloqueado, fazer coisas tão incríveis ao nível da Ciência, da Tecnologia e da Saúde?
Fidel afirmou em 1961 que o futuro de Cuba seria o da Ciência e do Pensamento e a Revolução apostou nisso. As capacidades que permitiram a produção de vacinas próprias assentaram no designado Polo Científico do Oeste de Havana, criado precisamente por impulso de Fidel Castro e hoje integrado no consórcio Cuba Pharma.
As vacinas não foram criadas em seis meses. A sua criação assenta no conhecimento acumulado ao longo de anos em termos de produção de vacinas e de biologia genética. Como afirmou o presidente Diaz-Canel, «a Ciência salvou Cuba da COVID-19», e é também graças a ela que hoje vivemos uma situação de normalidade.
A administração Trump agravou o bloqueio e a de Biden prometeu suavizá-lo. Estamos perante mudanças reais ou apenas retórica?
Com Trump foram aplicadas 242 medidas suplementares de agravamento do bloqueio. Biden prometeu atenuar algumas delas, nomeadamente ao nível das remessas dos emigrantes, que voltariam a ser possíveis. É falso! Pura propaganda! De que forma se processariam essas transferências? Com que mecanismos? Nada disto foi regulamentado.
Resistência com criatividade
Para lá das questões ambientais, científicas e tecnológicas, de que já falámos, que efeitos tem o bloqueio nas outras áreas da vida de Cuba?
O bloqueio afecta gravemente a vida do país em todos os aspectos.
Ao nível dos medicamentos, não podemos aceder aos que têm incorporação norte-americana. Quanto aos alimentos, temos de os ir buscar a mercados muito mais distantes, tantas vezes ao dobro e até ao triplo do preço.
Na energia sofremos uma perseguição quase diária, sendo muito difícil o abastecimento até em países amigos, como a Venezuela, pois um navio que faça esse transporte fica impedido de aceder a águas territoriais norte-americanas durante muito tempo… Em termos comerciais, alguma empresa ou banco que faça negócios ou transacções com Cuba sofre sanções, pelo que ou esses negócios ou transacções não se processam ou pagamos a mais por eles. Por vezes nem sequer autorizam o pagamento das quotas a organismos internacionais…
Mas nada disto é de hoje, tem mais de 60 anos. E nós resistimos! É uma questão de soberania, de dignidade, de não nos rendermos e de conseguirmos criar condições para o nosso desenvolvimento autónomo.
Que caminho está traçado para conseguir esse desenvolvimento autónomo?
Temos definido um Plano de Desenvolvimento Económico e Social até 2030, com eixos estratégicos, objectivos e medidas concretas, aprovado no VIII Congresso do Partido Comunista de Cuba, em 2021, a partir de orientações que já vinham do V Congresso [de 1997].
Há um movimento, que é transversal a todo o território e a todos os sectores, para implementar um sistema de governo baseado na Ciência e na Inovação, sob a premissa de que não há dificuldade, por maior que seja, que não possa ser superada com as nossas próprias forças e capacidades. A COVID-19, aliás, mostrou-nos isso.
O objectivo, agora, é aplicar essa premissa à produção de alimentos e de energia eléctrica. Estamos empenhados neste objectivo. É a resistência com criatividade.
E depois há a solidariedade, claro, que desempenha um importante papel: todos os anos, a quase totalidade dos países do mundo condenam o bloqueio norte-americano e reclamam o seu fim, e isso é muito significativo.
Uma coisa é certa, por maiores que sejam as dificuldades e os desafios, Cuba cá estará a demonstrar que é possível uma alternativa ao capitalismo, mais humana e solidária. Entre as pessoas como entre os países.
Pela eliminação total das armas nucleares
Trabalhou durante anos na área do desarmamento. Como observa hoje as crescentes ameaças de guerra entre potências nucleares?
Começo por remeter para as reflexões do Comandante Fidel Castro sobre o inverno nuclear, nas quais considera que um dos mais graves perigos para a Humanidade é precisamente o de uma conflagração nuclear. Um conflito desta natureza pode rapidamente pôr fim à vida no planeta e pode ocorrer em qualquer período de tensão entre países detentores de armas nucleares. É um grave risco.
Cuba é um dos países, entre mais de meia centena, que já aderiu ao Tratado de Proibição de Armas Nucleares. A que se deve esta posição?
O posicionamento de Cuba é claro, sempre foi. Somos pela paz e defendemos a eliminação total das armas nucleares. Ora, esse tratado, que aponta precisamente a esse objectivo, assume uma posição coerente, sendo que essas armas têm um propósito puramente ofensivo, servem para causar o máximo dano sobre populações e ameaçam a vida na Terra. Poucos países têm este poder e isso não é justo nem é racional.
Cuba defende esta posição em todas as ocasiões e espaços, tanto no país como a nível internacional.