- Nº 2534 (2022/06/23)

Um alargamento que expõe a natureza e o caminho da UE

Opinião

No actual contexto, marcado pela guerra e pela crescente confrontação no Leste da Europa, a adesão da Ucrânia à UE (tal como a da Moldova e da Geórgia) cedo se inseriu numa estratégia de instigação dessa confrontação. Em rigor, a perspectiva de associação da Ucrânia à UE, com a sua aproximação ao mercado único, sendo anterior à guerra, não deixa de estar associada à confrontação que nela desembocou.

Vale a pena recordar que a UE negociou durante anos um acordo de associação com a Ucrânia que, além da liberalização das trocas comerciais, pressupunha a realização de reformas estruturais, de recorte neoliberal, nas instituições e na economia ucranianas, envolvendo a famigerada «redução do peso do Estado na economia», privatizações, liberalizações, abertura de mercados. Os termos do acordo eram (são) leoninos para a UE, o que justificou resistências do lado ucraniano, contradições, avanços e recuos.

Significativamente, só após o golpe de Estado de 2014 o acordo foi assinado. A pressa foi tanta que a UE nem aguardou pela pseudo-legitimação eleitoral do governo golpista. O poder então instituído, integrando forças nacionalistas, incluindo de cariz assumidamente nazifascista, rapidamente se predispôs a assinar o acordo. Este poder foi responsável por profundas clivagens na sociedade ucraniana que vieram a desembocar no conflito interno e na guerra no Donbass.

Face a este enquadramento, qualquer perspectiva de procura empenhada da paz, tendo em vista uma solução política para o conflito, levará necessariamente à conclusão de que não faz sentido, nestas condições, travar o debate sobre a adesão da Ucrânia à UE. Que a UE o decida fazer, tendo presente a natureza do poder e do regime instalados em Kiev, por si só, diz muito da própria UE, do que dela se pode esperar quanto ao desenrolar do conflito e das opções geopolíticas a que se amarra – já há quem lhe chame o «pátio da frente dos EUA»...

Acresce que qualquer adesão à UE, a acontecer, deve resultar de uma decisão soberana, democrática, informada, de cada povo. No caso da Ucrânia, a situação actual impede, por razões óbvias, a verificação desta condição.

Imposições e soberania

Importa sublinhar, porém, que a atribuição do estatuto de candidato a um país não é sinónimo de adesão futura, menos ainda num futuro próximo. Há quem detenha tal estatuto há mais de 30 anos (caso da Turquia), não sendo claro que algum dia venha a aderir.

Aqueles que agora prometem uma adesão rápida à Ucrânia sabem-no bem. Sem afastar, neste caso, motivações geopolíticas que poderão determinar um tratamento diferenciado, a adesão à UE de um país com a dimensão da Ucrânia terá dois impactos inevitáveis, geradores de profundas contradições no seio da própria UE. Contradições que não se ultrapassarão sem sobressaltos.

Por um lado, introduzirá uma significativa alteração na relação de forças nas instituições e, por conseguinte, no processo de tomada de decisão. Algo que não é bem visto por quem manda. Por outro lado, perante um orçamento da UE que vem encolhendo desde há décadas (e que os beneficiários líquidos da integração não querem aumentar), a adesão da Ucrânia teria um impacto brutal na redução dos fundos recebidos por um conjunto significativo de países, incluindo Portugal. Seria o fim da política de coesão, como a conhecemos – mesmo sabendo-a já hoje parca e insuficiente, tal significaria dar rédea ainda mais solta aos efeitos assimétricos da integração.

Por tudo isto, alguns apostam num outro cenário: o da criação de um grande espaço de integração, uma grande área de influência das principais potências europeias, que admita graus diversos de pertença. Neste cenário, a Ucrânia (como outros países candidatos) até poderia integrar o mercado único da UE (digamos: abrir os seus mercados à colonização pelos grandes grupos económicos e financeiros europeus), integrar algumas políticas comuns da UE, mas ficar formalmente de fora, arrastando durante anos a condição de «candidato».

Independentemente do que ditarão desenvolvimentos nos quais sempre pesará a vontade soberana de cada povo, convém não ignorar a natureza profunda da integração capitalista, nem o significado dos alargamentos: submeter mais países aos objectivos de domínio económico e político das grandes potências e dos seus grupos económicos.

 

João Ferreira