Portugal cumpre os direitos das crianças?

Margarida Botelho

A propósito do Dia Mundial da Criança estão previstas muitas actividades e programas, mais ou menos comerciais, e serão feitas muitas declarações piedosas sobre como elas são o melhor do mundo. Respeitar e promover os direitos da criança não é assunto que se despache num dia – nem num pequeno texto. Mas é útil reflectir sobre como estamos em termos de direitos das crianças.

Para que se cumpram muitos dos direitos das crianças é preciso que os pais tenham direitos

«O Estado tem obrigação de proteger a criança contra todas as formas de discriminação e de tomar medidas positivas para promover os seus direitos.»1 «Cabe aos pais a principal responsabilidade comum de educar a criança, e o Estado deve ajudá-los a exercer esta responsabilidade. O Estado deve conceder uma ajuda apropriada aos pais na educação dos filhos», pode ler-se. A Convenção sobre os direitos da criança tem um conteúdo muito concreto. Parte, e bem, da ideia de que as crianças são seres humanos plenos e completos, titulares de direitos e merecedores de protecção especial, cuja primeira responsabilidade cabe às suas famílias mas da qual o Estado não se pode desresponsabilizar.

Quando o PCP afirma que crianças e pais com direitos criam melhores condições para que Portugal tenha futuro, fá-lo porque considera que a sociedade só tem a ganhar, no presente e no futuro, com crianças que crescem saudáveis e felizes, com um desenvolvimento integral. Para que se cumpram muitos dos direitos das crianças é necessário que os pais tenham direitos, nomeadamente no trabalho e nos serviços públicos.

«A criança tem direito a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. Cabe aos pais essa responsabilidade, mas o Estado tem o dever de tomar medidas para que essa responsabilidade seja assumida». Pensemos nos 23% de crianças que vivem na pobreza ou em risco de lá viver no nosso país, nos baixos salários, no aumento do custo de vida, nos preços das casas. Estamos a garantir o tal nível de vida adequado?

«A criança tem direito à educação. A educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta activa numa sociedade livre (...)». Pensemos na escola que temos: nas turmas sobrelotadas, nos currículos extensos, nos horários das 7 da manhã às 7 da noite, na falta de professores, nos pátios desumanizados, na sesta retirada a crianças de 3 anos, na falta de creche. Estamos a garantir essa educação?

A saúde das crianças implica que se dê uma atenção especial aos cuidados de saúde primários. Portugal tem dos melhores níveis de saúde materno-infantil do mundo e das mais altas taxas de vacinação. Mas quais foram os impactos do encerramento dos centros de saúde durante a epidemia? Quantas crianças não têm médico nem enfermeiro de família, nunca foram ao pediatra, ao dentista, ao oftalmologista, ao nutricionista ou ao psicólogo? Quantos não têm há anos uma consulta de saúde infantil?

«A criança tem direito ao repouso, a tempos livres e a participar em actividades culturais e artísticas», diz a Convenção dos Direitos da Criança. Este direito tem especialmente a ver com a vida dos pais. Quando sabemos que o que caracteriza o emprego da grande maioria das novas gerações de trabalhadores são a precariedade, a desregulação dos horários, o trabalho por turnos, à noite e ao fim-de-semana, sabemos também a consequência que têm na vida dos seus filhos: horas a menos de sono, de brincadeira, de convívio com os pais. Quando há falta de disponibilidade financeira e mental para diversificar as experiências das crianças, quando não há acesso à cultura, estamos a respeitar os direitos das crianças?

«A criança tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe digam respeito e de ver essa opinião ser tomada em consideração». «Têm direito à liberdade de pensamento, consciência e religião». «Têm o direito de se reunir e de aderir ou formar associações». Sabemos que não é isso que se passa: por opção ou porque não há outro remédio na voragem do quotidiano, as crianças, os adolescentes e os jovens são muito pouco ouvidos, decidem pouco das suas próprias vidas. Quando se organizam são olhadas com desconfiança e tentam impedi-las, como sucede frequentemente quando se envolvem em Associações de Estudantes. Estamos a garantir o seu direito à participação?

A Convenção sobre os direitos da criança também se debruça sobre as situações de especial vulnerabilidade em que demasiadas vezes encontramos crianças.

Refere-se à criança com deficiência, dizendo que «tem direito a cuidados especiais, educação e formação adequados que lhe permitam ter uma vida plena e decente, em condições de dignidade, e atingir o maior grau de autonomia e integração social possível». Que o digam as crianças e jovens com qualquer tipo de deficiência, os pais e outros cuidadores, se sentem que este direito à cumprido na escola, na saúde, no desporto, nos transportes, no emprego – cumprem-se os seus direitos?

Os direitos da criança também têm que ser garantidos pelos Estado «quando os pais, ou outras pessoas responsáveis por ela, não tenham capacidade para o fazer». Esta responsabilidade inclui o direito das crianças a manter contacto com os pais, à reunificação familiar, mas também o direito à adopção. As crianças devem ser protegidas de maus-tratos e de negligência, do trabalho infantil, do consumo e do tráfico de drogas, da exploração sexual, da venda, tráfico e rapto e de outras formas de exploração, tortura e privação de liberdade. Devem ser protegidas de conflitos armados, e as crianças refugiadas, de minorias ou indígenas devem sê-lo de forma especial. As crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo praticado crimes devem ser tratadas pela Justiça de forma respeitosa, com os olhos postos na sua recuperação. A degradação dos serviços públicos na área da segurança social, da educação, das comissões de protecção de crianças e jovens, das forças de segurança, da justiça, a gritante falta de meios humanos e materiais com que estes serviços se confrontam em alguns casos há décadas, são responsáveis por milhares de situações em que os direitos das crianças não foram respeitados e em que os desfechos foram dramáticos.

Estamos longe, felizmente, da forma como as crianças eram tratadas e encaradas durante o fascismo. Direitos, serviços públicos, fim das discriminações na lei, são conquistas de Abril que têm de ser defendidas. No projecto de desenvolvimento que o PCP tem para o país, os direitos das crianças e dos pais são condição para um Portugal com futuro.

 

Crianças, jovens e pais – o que diz a Constituição da República?

«As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.»

«Os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente: no ensino, na formação profissional e na cultura; no acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na segurança social; no acesso à habitação; na educação física e no desporto; no aproveitamento dos tempos livres.»

«A política de juventude deverá ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida ativa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade.»

« Estado, em colaboração com as famílias, as escolas, as empresas, as organizações de moradores, as associações e fundações de fins culturais e as colectividades de cultura e recreio, fomenta e apoia as organizações juvenis na prossecução daqueles objectivos, bem como o intercâmbio internacional da juventude.»

«Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país.»

«A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes. As mulheres têm direito a especial protecção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias.»

«A lei regula a atribuição às mães e aos pais de direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar.»

1. formulações retiradas do sítio da internet da Unicef Portugal