Quem nos ensinou a dizer «o povo unido jamais será vencido»
«De pie, cantar / que vamos a triunfar. / Avanzan ya / banderas de unidad»
É inevitável: sempre que há uma manifestação em que um grupo de pessoas reivindica direitos, salários, transportes, enfim, qualidade de vida, ouvimos a frase «o povo unido jamais será vencido». Ninguém a refuta, todos a conhecem e, quem luta em comum, num sindicato, numa comissão de moradores ou de trabalhadores, num grupo que se sente prejudicado e quer fazer valer a sua voz, o seu direito e a sua vontade, afirma, com ela, a sua força e determinação, a sua unidade.
Tudo começou no Chile, em Junho de 1973. Sérgio Ortega avançou com a música e o grupo Quilapayún deu-lhe letra e fez, da frase a que aludimos, um refrão e uma palavra de ordem. Defendia-se um governo e um presidente, Salvador Allende, eleitos democraticamente e que defendiam a via do socialismo para o povo chileno. A canção tornou-se um verdadeiro hino de unidade popular. Foi divulgada num disco de outro grupo, os Inti-Illimani, e alcançou um êxito retumbante que ultrapassou fronteiras. Em Portugal a cantiga foi gravada por Luís Cília, em 1974, o bom ano da Revolução. O cantor-compositor, o mesmo que escreveu o Avante, Camarada! (em 1967, quando estava exilado em Paris) gravou-a com acompanhamento dos próprios Quilapayún. No grande 1.º de Maio em Portugal, uma semana depois do 25 de Abril, foi a palavra de ordem mais repetida e mais empolgante que, principalmente em Lisboa mas não só, se ouviu: «o povo unido…»
O golpe
Cinquenta anos depois veio a lume a documentação que destrói por completo as teses defendidas pelo Ocidente (leia-se Estados Unidos e países que reverenciam a política americana). Afinal, «o golpe de Estado de 11 de Setembro, ocorrido no Chile em 1973 (…) derrubou o regime democrático constitucional do Chile e o seu presidente, Salvador Allende», e foi levado a efeito por oficiais amotinados da marinha e do exército chilenos, «com apoio militar e financeiro dos Estados Unidos e da CIA, bem como de organizações terroristas chilenas (…) de tendências nacionalistas neofascistas». Há, até, um telefonema entre Nixon e Kissinger em que o assunto é abordado, tendo ambos concordado, o presidente dos EUA e o prémio Nobel da Paz (?!?) que seria muito perigoso um governo marxista levar a sua avante, porque poderia servir de exemplo para outros países e pela ameaça que daí adviria para a política internacional estadunidense.
Pinochet, militar de extrema-direita, passou a ser o presidente imposto, tendo como missão destruir o que, em mil dias, o novo Chile tinha erguido e impossibilitando, assim, que o povo chileno prosseguisse o caminho que democraticamente escolhera.
Para que este retrocesso acontecesse, não se olhou a meios: tortura, prisão, morte, exílio forçado e por aí. Aliás, esta intromissão do Estados Unidos na vida de outros países não é caso único, como muito bem sabe quem acompanhou a guerra do Vietname, a questão do Iraque, as acções desenvolvidas no Afeganistão ou na Jugoslávia, e mais. Muito mais…
Quem é quem no Povo Unido
Sérgio Ortega Alvarado (1938-2003) foi um músico conceituado, professor do Conservatório Nacional de Música do Chile e um dos responsáveis pelo surgimento da Nova Canção Chilena. Compôs O Povo Unido Jamais Será vencido e a canção Venceremos. Morreu em Paris, onde viveu anos de exílio após a subida ao poder de Pinochet.
Os Quilapayún, palavra que, em língua machupe (povo indígena do sul do Chile) significa «três barbas», assim referenciando os elementos do grupo, numa altura em que usar barba era muito comum nos revolucionários, foram um grupo musical que esteve na origem da Nueva Canción Chilena. A Letra do Povo Unido é da sua autoria. Venceram, em 1966, o mais importante festival de música folclórica chilena. Desenvolveram muitos trabalhos com o cantautor Victor Jara, que foi torturado e mutilado pelos soldados de Pinochet. Juntamente com Victor Jara ganharam, em 1969, o 1.º Festival da Nova Canção Chilena.
Os Inti-Illimani (Águia Dourada), grupo da Nueva Canción formado em 1967, foram buscar o seu nome à língua Quéchua, importante família das línguas indígenas da América do Sul, ainda hoje falada por 10 milhões de argentinos, bolivianos, colombianos, equatorianos, peruanos e chilenos. Quéchua é uma das línguas oficiais da Bolívia, do Perú e do Equador.
Estavam em Itália aquando do golpe de 11 de Setembro e por lá permaneceram exilados e prosseguindo a sua carreira de representantes, na Europa, da Nueva Canción Chilena. Gravaram vários discos e fizeram, com outros músicos (John Williams e Paco Peña) uma memorável homenagem a Victor Jara, em 1985. Só voltaram ao Chile em 1988.
De novo O Povo Unido
«De pie, cantar / que vamos a triunfar. / Avanzan ya / banderas de unidad / y tu vendrás / marchando junto a mi / y asi verás / tu canto e tu bandera florecer. (…) El Pueblo, unido, jamás será vencido.»
Cantavam assim os chilenos, em 1973. Depois, sempre que as circunstâncias o pediram e pedem, cantaram e cantam, ou soletram, confiantes, o refrão da cantiga, milhões de pessoas por esse mundo fora. Acontecimentos recentes, no Chile, após a votação a favor (78,27 por cento) da mudança da Constituição que era, há 40 anos, a de Pinochet, «ressuscitam» a canção e a esperança do povo chileno. É preciso cantá-la e contar com ela, porque, afinal, «a cantiga é uma arma» e esta diz que o povo, unido, jamais será vencido.