Além da Dor, de Alexander Zeldin – As margens do capitalismo num drama realista
Além da Dor mostra a realidade dos que percorrem, para sobreviver, os subterrâneos de um mundo invisível, de existências precárias
O neo-realismo literário português e alguma da dramaturgia a ele associada – Forja e Maria Emília, de Alves Redol; O Vagabundo das Mãos de Oiro e Sol na Floresta, de Romeu Correia; Milagre da Rua, de Costa Ferreira; Os Dois Compartimentos, de Avelino Cunhal; O Motim, de Miguel Franco; Salva de Prata, de Sidónio Muralha; e Punho, de Bernardo Santareno – para além de outras experiências singulares, sob a égide estética de Bertolt Brecht, encetadas por José Cardoso Pires, Luzia Maria Martins, Luís de Sttau Monteiro, Santareno, Hélder Costa e outros, têm todos eles, com maior ou menor acuidade (não esquecer que muitos destes textos eram ferozmente vigiados pela Censura), como objectivo não apenas mostrar a realidade social, política e histórica do País, mas enquadrar neles, de forma dialéctica, argumentos passíveis de despertar no público a necessidade, a urgência, de que essa realidade se pudesse transformar, lançando pontes para a esperança possível num amanhã mais justo.
O realismo actual, que se assemelha conceptualmente ao realismo proudhoniano novecentista, embora não acertando o diagnóstico na crítica social que lhe subjaz sobre a igreja, a grande burguesia ou na degenerescência da aristocracia, mas incidindo, na sua vertente mais crua, na qual se inclui Alexander Zeldin, na realidade social dos invisíveis, dos operários que nas sociedades capitalistas contemporâneas trabalham sem qualquer tipo de protecção, de horários ou direitos sociais básicos. Alexandre Zeldin, autor de Além da Dor, peça agora encenada por Rodrigo Francisco para a Companhia de Teatro de Almada, dá-nos nesta sua obra de estreia um retrato amargo e despojado de uma dura realidade, cada vez mais presente nas relações de trabalho impostas pelo neoliberalismo.
Este drama social que Zeldin nos dá a ver de modo muito objectivo e sem filtros, no qual os silêncios tensos entrelaçam diálogos curtos que se limitam a breves momentos das jornadas de trabalho de três operárias da limpeza numa fábrica de transformação de carnes, contratadas a uma empresa de trabalho temporário para os turnos da noite, e de um operário o qual, embora sujeito ao mesmo tipo de exploração e arbitrariedades, tem sobre elas a vantagem de já pertencer aos quadros da empresa e, desse modo, auferir de algumas regalias.
Alexander Zeldin, dá-nos a ver em Além da Dor, a realidade dos que percorrem, para sobreviver, os subterrâneos de um mundo invisível, de existências precárias, de vidas em permanente suspensão sobre os abismos de uma cruel e indiferente organização social, em que os breves instantes de afecto, são mera expressão dos seus dramas íntimos, fugas breves e inconsequentes à sua extrema solidão. Um universo de excluídos em que a solidariedade é palavras vã face ao estupor dos mecanismos criados pelos que detêm o poder. Em que um níquel perdido numa máquina de café se constitui irremediável perda, em que se tem de dormir na rua, mesmo trabalhando, ou reinventar forças onde as não há para cumprir as tarefas impostas por um capataz que se esforça por ser, na sua pequenez, a «voz do dono».
Neste texto seco e brutal do autor inglês, que balança entre o mais cru humor negro e o drama dos quotidianos com futuro a prazo dos cinco seres que convivem no espaço de uma fábrica, espaço que se vai apertando como as suas pequenas vidas, não existe uma incidência que despolete a acção que conduza a um clímax. A tensão que percorre toda a peça constitui-se através de frases curtas, de ordens azedas, de pequenos sinais de inconformismo.
Ao contrário do teatro neo-realista que, mostrando a realidade, a denuncia e aponta caminhos para a sua superação, o texto de Zeldin dá-nos apenas a ver um retrato pungente dos dias de hoje. Daí sairmos desta peça com a sensação de que algo, por necessário, ficou por dizer.
Salientamos a modelar encenação de Rodrigo Francisco e as seguríssimas, e por vezes tocantes, interpretações de um excelente grupo de actores: Binete Undonque, Djucu Dabó, Maria Frade, Pedro Walter e Ivo Marçal.