Paz e segurança: afinal, quem as ameaça?

Mi­li­ta­ri­zação, cor­rida aos ar­ma­mentos, dis­se­mi­nação de bases e frotas na­vais, ame­aças de guerra, chan­ta­gens e san­ções, agressão mi­litar, di­recta ou in­di­recta: estes são traços da acção do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano nas úl­timas dé­cadas, que im­porta ter sempre pre­sente caso se queira com­pre­ender a si­tu­ação tensa que hoje se vive, na Eu­ropa e não só. Para lá de toda a pro­pa­ganda e de­sin­for­mação.

Para lá de toda a pro­pa­ganda, o im­pe­ri­a­lismo emerge como a grande ameaça à paz

Nas úl­timas se­manas, a tensão mi­litar no Leste da Eu­ropa sus­citou justas apre­en­sões e deu azo a uma au­tên­tica ava­lanche me­diá­tica (não con­fundir com no­ti­ciosa ou in­for­ma­tiva, pois é coisa bem di­fe­rente).

Porém, do muito que se disse e es­creveu, quase tudo passou ao lado do fun­da­mental: a acção de­ses­ta­bi­li­za­dora e be­li­cista do im­pe­ri­a­lismo, bem pa­tente, na­quela re­gião, no au­tên­tico cerco mi­litar à Rússia que EUA e NATO vêm pro­ta­go­ni­zando, e su­ces­si­va­mente aper­tando, há quase três dé­cadas, bem como nas cons­tantes pro­vo­ca­ções que en­gendra junto às fron­teiras do país euro-asiá­tico, di­rec­ta­mente ou por in­ter­médio dos seus ins­tru­mentos lo­cais – al­guns, aliás, bas­tante si­nis­tros, como é o caso do Ba­ta­lhão Azov e ou­tros agru­pa­mentos nazi-fas­cistas. Nesta es­tra­tégia de tensão e guerra, os in­te­resses do povo ucra­niano são o que menos conta para o im­pe­ri­a­lismo, que os sa­cri­fi­cará se daí puder re­tirar van­ta­gens.

Este rumo pe­ri­goso é re­pli­cado (com di­fe­rentes ex­pres­sões e sob di­versas si­glas) nou­tras re­giões do globo, vi­sando ou­tros alvos.

Com a si­tu­ação em rá­pido de­sen­vol­vi­mento, assim como a ope­ração me­diá­tica que a en­volve, im­porta não nos dei­xarmos sub­mergir na es­puma dos dias, de­ci­frar o que se es­conde por de­trás da pro­pa­ganda, ver o pa­no­rama com­pleto e puxar o filme atrás.

Nestas pá­ginas, em traço grosso, pro­cu­ramos res­ponder à per­gunta que im­porta: afinal, quem ameaça a paz e a se­gu­rança?

 

I — Das «pro­messas» à re­a­li­dade: a NATO às portas da Rússia

O de­sa­pa­re­ci­mento da União So­vié­tica e do campo so­ci­a­lista eu­ropeu, no início da dé­cada de 90 do sé­culo XX, re­sultou na dis­so­lução da sua es­tru­tura mi­litar, o Pacto de Var­sóvia. Do outro lado, e muito em­bora não exis­tisse já aquela que era a sua apre­goada razão de ser, a NATO não só não de­sa­pa­receu como se re­forçou e alargou o raio de acção e âm­bito ge­o­grá­fico.

Que­brando, uma após outra, todas as pro­messas de que não se ex­pan­diria para Leste («nem um cen­tí­metro», ju­rava em 1990 o Se­cre­tário de Es­tado norte-ame­ri­cano James Baker), a NATO não fez outra coisa desde então: logo em 1990, toda a Ale­manha se tornou parte da NATO; em 1999, jun­taram-se-lhe Re­pú­blica Checa, Hun­gria e Po­lónia; em 2004, as ex-re­pú­blicas so­vié­ticas Es­tónia, Le­tónia e Li­tuânia, mais Bul­gária, Ro­ménia, Es­lo­vá­quia e Es­lo­vénia; em 2009, Al­bânia e Croácia; em 2017, Mon­te­negro e, já em 2020, Ma­ce­dónia do Norte. Ucrânia e Geórgia, ambas com fron­teiras ter­res­tres com a Rússia, estão pro­me­tidas desde 2008.

A pos­si­bi­li­dade da Ucrânia se juntar à NATO (ou, mais pre­ci­sa­mente, de ser por ela ab­sor­vida) sus­citou nas úl­timas se­manas in­fla­madas de­cla­ra­ções acerca da li­ber­dade de cada Es­tado de­cidir das suas ali­anças. Omitiu-se, porém, que o prin­cípio da in­di­vi­si­bi­li­dade da se­gu­rança, es­ta­be­le­cido pela Or­ga­ni­zação para a Se­gu­rança e Co­o­pe­ração na Eu­ropa, as­sume que essa li­ber­dade não po­derá pôr em causa a se­gu­rança de outro país… Acei­ta­riam os EUA ter mís­seis es­tran­geiros es­ta­ci­o­nados junto às suas fron­teiras?

Para além das múl­ti­plas bases e dos avul­tados con­tin­gentes (alar­gados nos úl­timos dias), e dos acordos e par­ce­rias que a co­locam hoje em pra­ti­ca­mente todo o mundo, a NATO tem ainda ins­ta­lados em vá­rios países da Eu­ropa Cen­tral e Ori­ental com­po­nentes do seu sis­tema de es­cudo an­ti­míssil, que ameaça se­ri­a­mente o equi­lí­brio de forças nu­clear. Também nestes casos, em fla­grante vi­o­lação de acordos an­te­ri­ores, no­me­a­da­mente do Acto Fun­dador Rússia-NATO, de 1997, onde se ga­rantia que não se­riam ins­ta­ladas novas infra-es­tru­turas mi­li­tares per­ma­nentes na­quela re­gião.

 

II — A NATO não é, nunca foi, uma or­ga­ni­zação «de­fen­siva»

A su­posta na­tu­reza de­fen­siva da NATO é um mito sobre o qual as­senta toda a nar­ra­tiva im­pe­ri­a­lista em torno da si­tu­ação ac­tual no Leste da Eu­ropa, como aliás da his­tória mun­dial das úl­timas dé­cadas. Se­gundo esta ló­gica, a NATO nunca po­deria cons­ti­tuir uma ameaça para ne­nhum Es­tado por se tratar de uma or­ga­ni­zação in­trin­se­ca­mente de­fen­siva, be­né­vola, hu­ma­ni­tária, até … Porém, nada no seu per­curso e acção cor­ro­bora esta visão idí­lica.

A cons­ti­tuição da NATO, em Abril de 1949, impôs ao mundo um bloco po­lí­tico-mi­litar e a ló­gica da con­fron­tação e da cor­rida ar­ma­men­tista, con­tra­ri­ando – e in­ter­rom­pendo – a for­mação de um sis­tema de se­gu­rança co­lec­tiva, como pre­visto na Carta das Na­ções Unidas. O ob­jec­tivo de de­fesa do Mundo Livre, que pro­cla­mava, cho­cava de frente com a sua pró­pria com­po­sição: entre os mem­bros fun­da­dores con­tavam-se a di­ta­dura fas­cista por­tu­guesa e ou­tras po­tên­cias co­lo­niais que vi­o­lavam os mais ele­men­tares di­reitos dos povos sub­ju­gados ao co­lo­ni­a­lismo.

A cro­no­logia também não ajuda à tese da or­ga­ni­zação de­fen­siva. Aquando da sua cri­ação, a União So­vié­tica des­mo­bi­li­zava mi­lhões de sol­dados, des­ta­cando-os para as ta­refas de re­cons­trução na­ci­onal. Quanto ao Pacto de Var­sóvia, só seria criado em 1955, ou seja, seis anos de­pois da NATO: a ameaça co­mu­nista, per­ma­nen­te­mente bran­dida, serviu na per­feição para jus­ti­ficar a ma­nu­tenção – e o re­forço – da pre­sença mi­litar norte-ame­ri­cana na Eu­ropa.

Pro­cla­ma­ções à parte, sobra a re­a­li­dade: a NATO é um ins­tru­mento do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano apon­tado à so­be­rania dos Es­tados e aos di­reitos dos povos. Provam-no a sua par­ti­ci­pação em golpes de Es­tado, o apoio a di­ta­duras fas­cistas, as redes de es­pi­o­nagem, in­ge­rência e ter­ro­rismo (como a Gládio), as ma­no­bras de in­ti­mi­dação – como as que de­cor­reram ao largo de Lisboa, em 1975, face à Re­vo­lução de Abril.

A partir da úl­tima dé­cada do sé­culo XX, de­sa­pa­re­cido o seu opo­sitor de ontem, a NATO ra­pi­da­mente des­co­briu novas ame­aças ou de­sa­fios, para pro­curar jus­ti­ficar não só a sua ma­nu­tenção como o novo pro­ta­go­nismo que viria a as­sumir: não se tra­tava já de «conter» e «re­pelir» o mo­vi­mento li­ber­tador dos povos, mas es­tender o do­mínio im­pe­ri­a­lista a todo o mundo.

As agres­sões di­rectas à Ju­gos­lávia, à Líbia, ao Afe­ga­nistão; os acordos e par­ce­rias que a co­locam hoje em pra­ti­ca­mente todo o mundo; as re­vi­sões do Con­ceito Es­tra­té­gico, alar­gando áreas de ac­tu­ação e âm­bito ge­o­grá­fico, são ex­pres­sões desta es­tra­tégia.

 

III — Fac­tores de de­ses­ta­bi­li­zação, mi­li­ta­ri­zação e de guerra

Não há ar­gu­mento, dis­curso ou nar­ra­tiva, por mais cri­a­tivos que sejam, ca­pazes de des­mentir o que todos os factos e nú­meros com­provam: são os EUA e os seus ali­ados da NATO os prin­ci­pais res­pon­sá­veis pela acen­tuada mi­li­ta­ri­zação que marca o nosso tempo, com todas as ame­aças que dela de­correm.

Dei­xando de lado a re­tó­rica (e que pe­ri­gosa é…) e o que atrás já se re­feriu, veja-se em pri­meiro lugar a fatia re­pre­sen­tada pelos EUA e NATO no total das as­tro­nó­micas – e cres­centes – des­pesas mi­li­tares mun­diais. Se­gundo o Ins­ti­tuto In­ter­na­ci­onal de Es­to­colmo para os Es­tudos da Paz/ SIPRI, os gastos mi­li­tares as­cen­deram, em 2020, a mais de 1980 mil mi­lhões de dó­lares – um au­mento de 2,6% re­la­ti­va­mente ao ano an­te­rior e de 9,3% face a 2011. Ora, com gastos na ordem dos 778 mil mi­lhões de dó­lares, os EUA as­sumem so­zi­nhos 40% do total. Se lhe jun­tarmos os res­tantes mem­bros da NATO, ul­tra­passa-se os 60%, nú­meros dez vezes su­pe­ri­ores ao valor das des­pesas mi­li­tares russas – aliás, só as des­pesas mi­li­tares dos mem­bros eu­ro­peus da NATO, no seu con­junto, ul­tra­passam em muito as da Rússia.

Nos anos an­te­ri­ores, a ten­dência foi a mesma.

Os EUA in­vestem mais no seu ar­senal nu­clear do que todos os ou­tros países juntos, têm vindo a de­sen­volver armas nu­cle­ares mais mo­dernas e in­te­li­gentes e a in­vestir for­te­mente na apli­cação mi­litar da cha­mada in­te­li­gência ar­ti­fi­cial. Ad­mitem, na sua dou­trina mi­litar, a pos­si­bi­li­dade de des­ferir um pri­meiro ataque nu­clear, mesmo contra Es­tados que não de­te­nham este tipo de ar­ma­mento.

São também os EUA e a NATO – e não a Rússia ou a China – a terem uma pre­sença mi­litar em pra­ti­ca­mente todo o mundo. Se­gundo dados ofi­ciais, os EUA têm fora do seu ter­ri­tório mi­lhares de ope­ra­ci­o­nais es­ta­ci­o­nados em mais de 600 bases e ins­ta­la­ções mi­li­tares em cerca de 60 países. Supõe-se, porém, que os nú­meros reais sejam con­si­de­ra­vel­mente su­pe­ri­ores, de­vido ao ca­rácter se­creto de al­gumas dessas ins­ta­la­ções. A este nú­mero de­verá acrescer de­zenas de bases dos ou­tros Es­tados mem­bros da NATO.

Nas úl­timas três dé­cadas, os EUA têm vindo também a de­molir peça por peça o edi­fício de tra­tados e acordos in­ter­na­ci­o­nais de de­sa­nu­vi­a­mento e con­trolo ar­ma­men­tista er­guido por in­fluência do campo so­ci­a­lista e das grandes mo­vi­men­ta­ções em de­fesa da paz que mar­caram a se­gunda me­tade do sé­culo XX: entre ou­tros, os EUA aban­do­naram uni­la­te­ral­mente o Tra­tado sobre Mís­seis An­ti­ba­lís­ticos (ao mesmo tempo que de­sen­vol­viam os seus sis­temas an­ti­míssil), o Tra­tado sobre Forças Nu­cle­ares de Al­cance In­ter­médio e o Tra­tado sobre o Re­gime de Céu Aberto.

 

IV — Ve­lhas es­tra­té­gias, novos alvos

Desde há muito que o im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano vê na sua su­pe­ri­o­ri­dade mi­litar e na sua acção agres­siva res­postas para fazer face à crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e à perda da sua pre­pon­de­rância re­la­tiva a nível in­ter­na­ci­onal: a su­bor­di­nação de todo e qual­quer Es­tado que não se sub­meta aos seus di­tames é um ob­jec­tivo cen­tral da sua po­lí­tica ex­terna, as­su­mido de modo cada vez mais de­sas­som­brado. A Re­pú­blica Po­pular da China é, desde há anos, alvo cen­tral desta es­tra­tégia.

Nos úl­timos anos, têm sido muitas as formas en­con­tradas para atingir este ob­jec­tivo: guerras co­mer­ciais, chan­tagem sobre Es­tados para não apro­fun­darem re­la­ções com a China, de­ses­ta­bi­li­zação in­terna, cam­pa­nhas me­diá­ticas e, também, o cerco mi­litar. Tal como su­cede no Leste da Eu­ropa e Ásia Cen­tral, em torno da Fe­de­ração Russa, também na Ásia Ori­ental e no Pa­cí­fico se ergue já hoje um anel de fogo em torno da RP da China, com de­zenas de bases mi­li­tares, frotas na­vais e sis­temas de mís­seis.

De­pois de, em 2007, ter sido cons­ti­tuído o de­no­mi­nado Diá­logo de Se­gu­rança Qua­dri­la­teral (Quad), en­vol­vendo os EUA, o Japão, a Índia e a Aus­trália, foi anun­ciada há meses a cri­ação do acordo mi­litar de­sig­nado AUKUS, acró­nimo em in­glês de Aus­trália (A), Reino Unido (UK) e EUA (US). No seu âm­bito, a Aus­trália será do­tada de uma frota de sub­ma­rinos nu­cle­ares e de uma infra-es­tru­tura capaz de a manter e de­sen­volver; já os bri­tâ­nicos e os norte-ame­ri­canos (so­bre­tudo estes úl­timos) verão au­men­tada a sua pre­sença mi­litar na re­gião, po­dendo uti­lizar bases e postos mi­li­tares aus­tra­li­anos para es­ta­ci­o­na­mento e mo­vi­men­tação de tropas, na­vios, ae­ro­naves e ar­ma­mento.