2015 – 2022: determinação, coerência, compromisso de classe

Vasco Cardoso

Quando, na noite de 4 de Outubro de 2015, o Secretário-geral do PCP adiantava, no rescaldo das eleições legislativas que tinham acabado de ocorrer, que o PS só não formaria governo se não quisesse, o PCP marcava uma viragem na vida política nacional, abrindo a porta de saída ao Governo PSD/CDS que tinha levado a cabo uma das mais brutais agressões aos direitos dos trabalhadores e do povo português desde os tempos do fascismo.

Aceitar qualquer Orçamento do Estado para não enfrentar eleições significaria romper com o compromisso com os trabalhadores e o povo

A corajosa intervenção do PCP dava lugar ao que haveríamos por designar de «nova fase na vida política nacional». Tratou-se, na verdade, de uma derrota imposta ao grande capital que nunca se conformou com o facto de, pela primeira vez em vários anos, ter de lidar com um governo que não tinha as mãos completamente livres para servir os seus interesses. E foi uma vitória de todos quantos tinham lutado contra o Pacto de Agressão, só possível porque o Partido, guiado pelo seu compromisso de classe com os trabalhadores e o povo, assumiu, sem esperar por terceiros e de forma independente, dar esse passo.

Como qualquer decisão política, também esta não estava isenta de contradições e riscos – seja pela adulteração do significado da solução política encontrada, seja pela apropriação pelo PS dos avanços que se viessem a alcançar, seja pelo recrudescimento da acção reaccionária, seja ainda por chantagens e ilusões que saberíamos ir enfrentar – mas o risco maior para os trabalhadores, para o povo e também para o Partido, seria o de deixar prosseguir a marcha forçada da exploração e empobrecimento com as consequências – no plano económico, social e ideológico – que estamos longe de conseguir medir em toda a sua extensão.

Como sublinhámos no XX Congresso, «contrapor os interesses do PCP aos dos trabalhadores e do povo, separando o que é inseparável, suportado na ideia de que seria na dificuldade extrema e na degradação insuportável das condições de vida das massas que elas adquiririam consciência revolucionária, só pode conduzir não a mais mobilização e luta mas sim a desistências, a oportunismos e radicalismos».

Nos anos que se seguiram enfrentámos uma permanente adulteração da realidade política vigente. Uma solução claramente limitada que nunca colocou o Partido como força de apoio ao governo PS nem configurou, pese embora toda a mistificação que foi sendo imposta – e de que a expressão geringonça é exemplo –, nenhum governo ou maioria de esquerda, mas sim, como escrevemos na Resolução Política do XX Congresso, «uma situação em que, tendo contribuído para que o Governo iniciasse funções e desenvolva a sua acção, o PCP mantém total liberdade e independência políticas, orientando a sua análise e decisões a todo o momento em função do que serve os interesses dos trabalhadores, do povo e do País».

Consciente do quadro contraditório em que desenvolveríamos a nossa acção, com as possibilidades e limitações que lhe estavam inerentes – por um lado, a concretização de um conjunto de avanços decorrentes da luta de massas e da acção do PCP e por outro as opções de classe do Governo PS de submissão às imposições da UE e aos interesses do capital monopolista – o Partido conduziu sempre a sua intervenção visando, decidir em cada momento – muito para lá de cada Orçamento do Estado – aquilo que melhor serviria os interesses dos trabalhadores e do povo.

Foi na base dessa mesma coerência que nunca demos por aprovado nenhum Orçamento do Estado antes de o discutir, ou qualquer outro diploma, seja do Governo, seja da Assembleia da República. Cada sentido de voto foi medido e decidido em função de um critério fundamental: o que melhor serve os interesses dos trabalhadores e do povo português. Uma intervenção que teve que enfrentar, seja a permanente mistificação da solução política alcançada, seja a deliberada ocultação da crítica contundente que o Partido foi fazendo às opções mais estruturantes do PS e, sobretudo, o recrudescimento da ofensiva anticomunista e das sucessivas campanhas lançadas contra o Partido pelos centros de decisão do grande capital.


Apelos e chantagens

Nestes anos o PS conviveu sempre mal com a solução política encontrada. Viu-se obrigado a fazer cedências contrárias à sua própria natureza. É isso que explica que muito do que foi alcançado tenha sido arrancado a ferros. Procurou ainda, e sempre que possível, fugir e adulterar compromissos que tinha assumido e em matérias que não as orçamentais, fez da convergência com o PSD (que a comunicação social sempre apagou), a sua primeira opção. Uma realidade que tendo estado sempre presente, se acentuou a partir de 2019 – depois das eleições legislativas desse ano – onde o PS reforçou as suas posições por contraponto à CDU. Nada disto surpreendeu o Partido. Surpresa seria se o PS rompesse com os interesses do grande capital a quem nunca deixou de ser fiel.

Da mesma forma que não pedimos licença a ninguém para afastar o governo PSD/CDS, com a mesma determinação com que, ano após ano, não nos deixámos condicionar pelas dificuldades e limitações do quadro político quando fomos à luta por todas e cada uma das medidas positivas que foram alcançadas, também nunca nos submetemos às chantagens, e foram várias, que o PS foi ensaiando. A última das quais em torno da proposta do Orçamento do Estado para 2022.

Uma chantagem articulada com o Presidente da República e traduzida na seguinte ideia: ou aceitam as opções de um Orçamento do Estado e para além dele que não respondem às necessidades mais urgentes, ou vamos para eleições. O plano para garantir que o PS fugia às soluções para o País estava traçado. Era preciso «vender» a proposta de Orçamento como «o mais à esquerda de sempre», transformar o PS em vítima e o PCP em carrasco culpabilizando-o pela «crise».

A campanha eleitoral seria disputada num plano claramente inclinado e tudo isso era perceptível. O apelo à bipolarização, a recuperação da tese de que seriam eleições para primeiro ministro e não para 230 deputados, o branqueamento do PSD (e do CDS), a promoção das forças reaccionárias até ao limite, a instrumentalização do medo – da pandemia, das eleições, da direita, do futuro –, a projecção da «estabilidade» como valor absoluto e desligado da vida de cada um, a desvalorização da CDU, apresentada como força em perda contrastando com a promoção de outros, incluindo o BE que nunca deixou de beneficiar dessa projecção pública. E depois, o «taco a taco», a disputa «voto o a voto» entre PS e PSD, alimentada pelos debates, pelos comentadores, pelos artigos e manchetes de jornais, num quadro em que as sondagens foram apenas um instrumento (poderoso é certo) ao serviço dessa mesma estratégia.

O fim último deste plano seria o de afastar o PCP da influência – ainda que limitada – no condicionamento do governo e, seja por uma maioria absoluta do PS seja por uma solução tipo «bloco central» com o «segundo a apoiar o primeiro», nas palavras de António Saraiva, da CIP, assegurar que a política direita se desenvolveria no futuro sem os freios que tinham marcado os últimos seis anos. Saiu uma maioria absoluta do PS de António Costa que, tal como a que foi a maioria absoluta do PS de José Sócrates, deixou o grande capital satisfeito.


Compromissos
para cumprir

Há quem se interrogue legitimamente se vendo esse filme em movimento, não teria sido preferível «fechar os olhos» e encolher os ombros perante a proposta do Governo aceitando um qualquer Orçamento do Estado para não enfrentar eleições. Ir por esse caminho significaria romper com o compromisso com os trabalhadores e o povo, assumir um posicionamento político contrário aos interesses de classe que defendemos, ficando amarrados à ausência de respostas aos problemas que – apesar de terem solução à vista – o governo se recusava a responder.

Não ceder à chantagem do PS e do Presidente da República, nem às pressões do grande capital, não são um pormenor neste percurso. São um elemento central para uma força que fala verdade ao povo, que não desperdiçou nem desperdiça nenhuma oportunidade para conquistar direitos, que luta pela ruptura com a política de direita, que se assume como a força portadora de uma política alternativa, uma política patriótica e de esquerda, que quer promover a convergência de democratas e patriotas na luta por um Portugal com futuro. Que luta pela concretização da Democracia Avançada que inscreve no seu Programa e que não prescinde dos seus objectivos supremos, a construção do socialismo e do comunismo. Uma força, um Partido, que se habituou a «pensar pela sua própria cabeça». Que ganhou experiência nos mais de 100 anos de luta. Que aprendeu e aprende, tanto com os seus acertos como com os erros.

Como dissemos no nosso XXI Congresso, realizado no final de 2020, «sem prejuízo da importância da resposta a problemas mais urgentes, as soluções e a política de que o País precisa para vencer os seus défices estruturais e assegurar um desenvolvimento soberano não encontram saída no espartilho das opções de classe do PS e do seu governo». Foi essa constatação que o processo em torno da discussão sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2022 (e no que para lá dele se exigia), com a consequente convocação de eleições, veio tornar ainda mais evidente.

Como temos dito, a realização de eleições não resolveu nenhum dos problemas do País, sejam os mais estruturais, sejam os mais imediatos e urgentes, incluindo os que decorrem ainda dos impactos da epidemia. Dizer que a ausência de resposta a esses mesmos problemas, por parte do Governo PS, aprofundará injustiças e desigualdades, acentuará atrasos e problemas crónicos do País, mesmo com a bazuca, mesmo com a dita estabilidade, não é futurologia. É a constatação de uma prática política conhecida das últimas décadas. Uma realidade que vai exigir que o Partido continue a sua luta, travada em circunstâncias diferentes, é certo, mas onde a sua determinação, a sua coerência, o seu compromisso de classe serão uma vez mais postos à prova.