Desfazendo mitos sobre a TAP

Temos duas privatizações/renacionalizações que seria natural estarem a ser agora discutidas: a TAP, devido ao processo da Comissão Europeia; os CTT, com a alteração à Lei Postal para beneficiar o Grupo económico que o dirige. Só se ouve falar na TAP.

Esta é uma «reestruturação» para destruir a TAP

 

Lusa

À direita do quadro bipolar em que tentam amarrar o eleitorado, a privatização dos CTT é tão indefensável que a melhor forma de garantir é apagá-la do debate político. Já a TAP, objecto de uma contínua campanha suja durante os últimos 20 anos, é mais facilmente utilizável em «memes» liberais. À esquerda dessa polarização artificial, só a TAP permite ao PS dar uns ares de esquerda, pois os CTT deixam o PS completamente exposto, tropeçando nas suas próprias contradições e caindo sempre para a direita.

A capacidade de fazer a agenda é isto. Serve o jogo deles todos, e por isso o jogam. De todos menos do PCP. Por isso tentam que ele não jogue.

E é assim que a TAP continua na berlinda, transformada em saco de pancada dos liberais (e não me refiro aos membros de um partido, mas sim à esmagadora maioria dos que têm direito a ser ouvidos no debate político, sejam dirigentes políticos, jornalistas ou comentadores, todos com as meninges derretidas pelo dogmatismo neoliberal).

Vamos pois tentar desfazer alguns mitos sobre a TAP e lembrar algumas verdades1.

 

Mito n.º 1 – A TAP é um sorvedouro de dinheiro público

A sugestão é que cada um analise o conjunto de apoios públicos atribuídos, em Portugal, às companhias aéreas nos últimos 10 anos normais. Falamos de subsídios directos ou indirectos. Há duas constatações.

Os únicos apoios públicos directos que a TAP recebia eram para reduzir o preço nas deslocações entre o Continente e as Ilhas. Que, como se pode ver no quadro 1, não só já acabaram (com a liberalização destas ligações em prejuízo dos passageiros) como sempre foram naturalmente inferiores aos atribuídos à SATA, e muitos desvalorizado face aos apoios dados à ligação aérea a Bragança (para a privada Aerovip). A TAP não recebeu qualquer outro apoio público directo.

Nos apoios indirectos, a Ryanair e outras empresas concorrentes da TAP receberam muito mais apoios que esta. Apesar dos números estarem escondidos (em nome do segredo comercial), são conhecidos os apoios de milhões do Governo dos Açores e da Madeira à Ryanair, os muitos milhões anuais do Turismo Nacional à Ryanair, e as vantagens atribuídas pela ANA à sua operação.

Mas falemos também do que deixam em Portugal cada uma das diferentes companhias. Os mais de 10 mil postos de trabalho directos e 20 mil indirectos da TAP deixam uma imensa riqueza no País – mais de 600 milhões/ano de salários directos, outro tanto de salários indirectos, mais de 100 milhões de contribuições directas para a Segurança Social, outro tanto indirecto, mais de 200 milhões de IRS. E as outras companhias? O grosso dos seus postos de trabalho não está em Portugal, e os que estão são por norma mais mal pagos e mais precários que os da TAP. Isto sem falar no contributo da TAP para o PIB (mais de três mil milhões) e para as exportações (mais de mil milhões).

E deixar-vos um último dado: se a TAP fosse uma empresa privada, não seria pacífico um apoio de 100 ou 200 milhões para conseguir os resultados acima enumerados? Não é o que estão a defender para os dinheiros públicos do PRR?...

 

Mito n.º 2 – A TAP dá sempre prejuízo

Se formos aos Relatórios e Contas da TAP dos últimos 10 anos antes da pandemia, chegamos à conclusão que a ideia mil vezes repetida da TAP dar sempre prejuízo é uma mentira (quadro 2).

Ou seja, não só a TAP SA deu lucro em seis dos últimos 10 anos, como o grosso do prejuízo foi depois da privatização!

É verdade que a TAP SA (que inclui a aviação comercial e a manutenção Portugal) é «apenas» a parte central da TAP SGPS, e que os números dos resultados líquidos da SGPS não são tão positivos. Mas os resultados da SGPS só são sistematicamente negativos pelos resultados da Manutenção Brasil e pelo negócio que a gerou, a compra da manutenção da ex-Varig, a VEM. Uma negociata onde a TAP enterrou dezenas de milhões de euros por ano (e bem mais de 500 milhões no total).

A TAP possui uma excelente Manutenção e Engenharia em Portugal, reconhecida a nível mundial e que deu lucro todos os anos. Nunca se percebeu porque alguém decidiu comprar a VEM, mas contou com a cobertura dos sucessivos governos do PS e do PSD, apesar de sempre confrontados pelos trabalhadores e pelo PCP.

 

Mito n.º 3 – A TAP precisava de ser reestruturada

Chegamos a 2020 e a pandemia abate-se sobre o sector da aviação civil. À escala mundial o sector é paralisado. Em Março, Abril e Maio de 2020 essa paralisação é quase a 100%, e desde então continua com fortes reduções. Torna-se evidente que ou os Estados fazem algo ou o sector colapsará2. Os Estados intervêm. O primeiro exemplo vem dos EUA de Donald Trump, que libertam 30 mil milhões a fundo perdido. Depois a Alemanha, a França, o Reino Unido. Em Agosto de 2021 a IATA contabilizava 239 mil milhões de euros de ajudas públicas às companhias aéreas.

A pandemia abate-se sobre a TAP quando esta está sobre gestão privada (coisa pouco falada agora), tinha acabado de se endividar com a aquisição de 1,5 mil milhões de euros de aviões novos, e vinha de dois anos com resultados negativos significativos apesar de um crescimento verdadeiramente importante da operação3. Era difícil a paralisação da actividade ter calhado num momento pior.

Uma empresa de aviação com aviões em terra continua a pagar salários (a Ryanair menos devido aos contratos zero horas), continua a pagar os aviões, passa a pagar mais de alugueres nos aeroportos, está sujeita a um inferno de cancelamentos/remarcações/ indemnizações (a Ryanair menos porque desrespeita tanto os passageiros como os trabalhadores), etc.

O que a TAP precisava, como as outras companhias, era de um plano de contingência para fazer face à pandemia. Um plano que assumisse os custos inevitáveis que o Estado suportaria de uma forma ou outra. Um exemplo: se por absurdo a TAP fosse à falência e todos os seus trabalhadores fossem despedidos (como defendem alguns), quem pagaria as centenas de milhões de euros de subsídios de desemprego? Com a economia nacional dependente de empresas como a Ryanair para alimentar a retoma da actividade turística, quanto custaria a chantagem?

O que a empresa não necessitava era de um Plano de Reestruturação. Quando os privados fugiram da TAP (porque o Governo lhes exigiu – e aqui bem – que acompanhassem a injecção de capitais públicos), deixaram a empresa ligeiramente inchada, mas perfeitamente viável.

O problema passou a ser a UE (e a submissão do PS à UE) que viu a ocasião de concretizar finalmente o destino da TAP pelo qual trabalha há vinte anos: a sua destruição enquanto companhia nacional de bandeira. E impôs a reestruturação.

 

Mito n.º 4 – A TAP tem que ser privatizada

E chegamos ao último mito. Este processo de reestruturação prepara a quarta privatização da TAP, a terceira privatização da SPDH/ Groundforce e a primeira privatização da Cateringpor. Isto depois da TAP já ter sido obrigada a vender as Lojas Francas à multinacional Vinci.

Primeira nota. A TAP foi obrigada a libertar-se de tudo o que era rentável: a SPDH era altamente rentável, as Lojas Francas sempre deram lucro, a Cateringpor também. A fonte de todo o prejuízo do grupo – a Manutenção Brasil – é que sempre foi deixada no grupo!

Segunda nota: a instabilidade permanente que estes processos implicaram. A SPDH, por imposição da UE (e submissão dos diversos governos) foi separado da TAP e depois objecto de duas privatizações falhadas. E os prejuízos causados pelos processos de privatização da própria TAP? Quando o Governo PS/Guterres a entregou à Swissair, e a privatização só não aconteceu porque a Swissair faliu primeiro? A TAP já tinha vários processos integrados com a Swissair, quanto perdeu? Muitas dezenas de milhões? Algumas centenas de milhões? E o segundo processo de privatização, à também já falida Avianca, que acabou interrompido na véspera da sua consumação por absoluta falta de garantias da compradora? E o terceiro processo de privatização, desta vez à Azul de David Neelman, com a rigorosa UE a fingir acreditar que a venda tinha sido realizada a Humberto Pedrosa? E a subsequente negociata com os aviões? E as rotas em code-share? Já se apurou quanto ganhou a Azul e David Neelman com a «operação TAP» antes de fugir?

Há mais de 20 anos que ouvimos dizer que a TAP só sobrevive se privatizada. E no entanto o que a vida tem demonstrado é que a dificuldade tem sido fazê-la sobreviver a cada privatização.

Última nota

Há muito na gestão da TAP a melhorar. A TAP não pode ser apenas um Hub entre a Europa e a América. Isso tem importância económica, mas é preciso responder melhor às necessidades nacionais; às ligações às ilhas, aos PALOPs, às comunidades emigrantes, às necessidades da economia nacional e às relações com outros países. Mas o que o plano de reestruturação está a fazer é o exacto oposto – encolher a TAP ao Hub de Lisboa – para facilitar a venda a um grupo que queira usar a rede da TAP. É uma reestruturação para destruir a TAP.

1Sem ter a pretensão de esgotar o tema. Não falaremos da negociata LAR/BES/Portugália, nem da separação TAP/ANA, nem do Project Rise, nem...

2Mas quando o PCP colocou a necessidade, em Março de 2020, de agir de imediato para salvar a TAP e a SPDH, a proposta foi chumbada.

3A Comunicação Social valorizava então esses recordes de passageiros transportados (para valorizar a privatização). Só os trabalhadores e o PCP alertavam para que a empresa estava mais a inchar que a crescer, e apontavam os erros da gestão privada.