Resistência e desafios da Venezuela Bolivariana

A Venezuela Bolivariana assinalou recentemente o bicentenário da Batalha de Carabobo (1821). A história recorda esse momento pelo enfrentamento e derrota do exército colonial espanhol às mãos das tropas crioulas comandadas por Simón Bolívar, pelo nascimento da Venezuela independente. Simón Bolivar, o herói libertador, o revolucionário, avançou posteriormente pela América do Sul, conquistando as independências da Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia.

A Venezuela Bolivariana enfrenta e resiste a uma poderosa ofensiva imperialista

A Batalha de Carabobo colocava um ponto final em 300 anos de domínio colonial espanhol, conferia força material à aspiração de emancipação nacional e social, dava lugar à independência e com ela à soberania, arrastava consigo a conquista de direitos – revertidos pela oligarquia local após a morte de Bolivar. O processo bolivariano da Venezuela compreende a valorização e promoção da memória histórica,da cultura e identidade do povo, do sentimento e acção patrióticas. E o seu grande impulsionador foi o presidente Hugo Chávez. Bolívar, e posteriormente Chavez, deram significado, sentido e confiança ao processo emancipatório, à autodeterminação, livre do domínio externo, à importância da unidade do povo e dele com os militares, da vontade de edificar o país utilizando recursos que só a si pertencem.

Não estavam imbuídos de uma visão autárcica,no seu projecto estava compreendido o relacionamento internacional de amizade, cooperação e integração na base da reciprocidade e do reforço da independência e da soberania, da unidade latino-americana, da paz. Desde a morte de Simón Bolívar até à chegada à presidência de Hugo Chávez (1998),a história da Venezuela é marcada, em grande medida, pela vassalagem da sua oligarquia perante o imperialismo, pelo desprezo pela pátria,a independência e a soberania, tanto como pelo fulgor do ataque aos direitos dos trabalhadores e do povo, por abandonar sem tecto e em situação de pobreza e extrema pobreza milhões de venezuelanos, pela espoliação dos seus recursos, particularmente dos hidrocarbonetos, recebendo em troca as migalhas que o imperialismo distribui a quem o serve.

Quando o poder bolivariano subverteu esta ordem e impôs um caminho de soberania, democracia e justiça social,a reacção daqueles que dentro e fora do país viram eliminados os seus privilégios foi a desestabilização,a ingerência, a violência, o boicote, o bloqueio, o golpe de Estado, a ameaça militar, a agressão– tudo montado em operações mediáticas ardilosamente preparadas e difundidas, baseadas em mentiras e falsificações e em permanentes manobras de hostilização diplomática.

Ofensiva permanente

O imperialismo não perdoa– nunca perdoará!– o atrevimento da Venezuela Bolivariana, o processo que Hugo Chávez impulsionou, a partir de 2002: o controlo público das maiores reservas de hidrocarbonetos do mundo, o seu uso a favor do progresso social, da independência e da soberania – entre 2002 e 2012 a Venezuela aumentou os seus recursos financeiros em 427 mil milhões de dólares–, substituindo o modelo que permitia às transnacionais apossar-se da parte de leão da renda do petróleo. Sucede-se o golpe de Estado de 2002 e o bloqueio à produção de petróleo e gás, sempre com os EUA e a UE no comando ou a manobrar na sombra.

Frente às arremetidas do imperialismo norte-americano e dos seus aliados da UE,a resposta foi sendo o aprofundamento do processo bolivariano, reforçado de forma mútua por uma impressionante capacidade de mobilização popular, pela unidade do povo e das forças armadas– a unidade cívico-militar–, a que corresponderam amplas conquistas sociais, a retirada da pobreza e da extrema pobreza de milhões de venezuelanos, a eliminação do analfabetismo, a redução do desemprego,a valorização salarial, o direito à saúde, educação e habitação (milhões de casas/apartamentos distribuídas).

Em 2013, morre o presidente Hugo Chávez e desaparece a figura proeminente do processo até então, conduzindo a eleições presidenciais extraordinárias ganhas por Nicolás Maduro. Em resposta, o imperialismo intensifica a campanha de desestabilização e de guerra permanente não convencional. A administração norte-americana, liderada por Barack Obama, decreta em 2015 que a Venezuela é uma «ameaça inusual e extraordinária à segurançanacional e à política externa dos EUA». Um decreto entretanto mantido pelos seus sucessores (Trump e Biden), enquadra a escalada de ingerência que se segue e a ameaça permanente de agressão militar.

Ameaça e cerco

«Temos o exército mais forte do mundo e ocasionalmente temos de torcer o braço aos países que não querem fazer o que queremos que façam, se falharem outros mecanismos de pressão, nomeadamente económicos, diplomáticos e por vezes militares.»– Barack Obama, 2015.

Para «torcer o braço»à Venezuela, o imperialismo norte-americano e os seus aliados da UE contaram sempre com colaboracionistas venezuelanos, desde a social-democracia à direita e à extrema-direita de Juan Guaidó e Leopoldo López, aliados da campanha internacional de hostilização e tentativa de isolamento político e diplomático,que continua. Além das acções referentes ao período de Hugo Chávez, juntos são responsáveis pela acção criminosa nas guarimbas, em 2014, a violência de 2017,a tentativa de assassinato de Nicolás Maduro e da direcção político-militar, em 2018, a tentativa de subversão a partir da Colômbia e do Brasil e de golpe, em 2019, a tentativa de desembarque de mercenários, em 2020, as permanentes ameaças– particularmente a partir da Colômbia – e cerco militar marítimo e terrestre. A lista não é exaustiva.

Para travar o processo bolivariano, o imperialismo decidiu punir o povo que o legitima, através da imposição de um férreo bloqueio económico,comercial e financeiro, que vigora desde 2015, impedindo operações financeiras do Estado, arrestando e confiscando recursos e activos do Estado e da PVDSA (Petróleos de Venezuela), incluindo a empresa CITGO, nos EUA– cujos activos estão avaliados em mais de 40 mil milhões de dólares – impondo o embargo ao comércio do petróleo venezuelano.

O bloqueio cortou o financiamento do país, impediu o acesso a divisas para produzir ou importar alimentos, medicamentos e outros produtos básicos, matérias-primas e equipamentos, dificultando o funcionamento do Estado,o pagamento de salários e a protecção social, limitou significativamente o investimento: entre 2014 e 2019, o Estado perdeu 98,6 % das suas receitas, passando de uma receita do exterior de 52 mil milhões de dólares,em 2013, para dispor de apenas 743 milhões de dólares, em 2020. A Venezuela terá perdido, desde 2015, cerca de 30 mil milhões de dólares por ano em receitas.

O imperialismo explora fac tores estruturais e conjunturais da situação da Venezuela, como sejam o modelo baseado na renda do petróleo (que mesmo mudando a finalidade e os destinatários da receita daí proveniente, não cessou de existir), os défices produtivos, o aumento da procura interna resultante do crescimento do poder aquisitivo do povo , os direitos ao emprego, saúde, educação e protecção social– em que se haviam dado passos significativos –, além do permanente boicote interno.

Apesar das medidas tomadas para controlar a situação de hiperinflação, ela mantém-se, causada pelos ataques especulativos sobre a moeda venezuelana,o Bolívar, pela circulação paralela do dólar, pelo açambarcamento,que leva à escassez.

O processo bolivariano resiste e continua a desferir golpes ao imperialismo. Em 201 7, perante a campanha de violência paramilitar (causou mais de 100 mortos), foi eleita, com uma participação popular massiva, a Assembleia Nacional Constituinte, face à atitude da Assembleia Nacional resultante das eleições de 2015, dominada pela oposição golpista,que funcionava em desacato com a Constituição e apelava abertamente à violência. Desacato e violência instigados pelos EUA, que impuseram mais sanções, forçaram a oposição a rejeitar os acordos a que através do diálogo com o governo havia chegado, não reconheceram a vitória de Nicolás Maduro nas eleições de 2018 e declaram ilegítimo o seu poder: ganha forma a farsa Guaidó, que se auto-proclamou presidente da Venezuela, com reconhecimento quase unânime da UE (incluindo do governo português, que não teve pejo em funcionar como capacho do imperialismo), numa manobra que levou ao confisco e arresto de bens do Estado venezuelano, de que é exemplo a retenção ilegal de 1500 milhões de euros depositados no Novo Banco.

Bloqueio e problemas por resolver

A Venezuela não está só. Depois de um momento em que governos reaccionários, particularmente da Colômbia e do Brasil, se uniram em torno do chamado Grupo de Lima, a situação de isolamento internacional vem perdendo expressão na América Latina, onde a correlação de forças é hoje mais favorável às forças da paz, do progresso e da justiça social: o projecto de integração dos povos da "Nossa América",da "Pátria Grande", a irmandade de povos sonhada e pela qual lutaram Bolívar, Martí, Fidel, Chávez, e outros, não está morta.

O bloqueio económico, comercial e financeiro impõe uma situação de agressão e brutais constrangimentos ao desenvolvimento da Venezuela, particularmente agravados no contexto da pandemia de COVID-19, cuja resposta acarreta desafios e tarefas exigentes. Além da dependência da renda petroleira (num contexto em que vigora o embargo à venda de petróleo venezuelano), a Venezuela tem um sistema de economia mista em que o sector privado domina 70% da economia e em que grandes grupos económicos se aliam ao imperialismo através do boicote e do açambarcamento, incluindo de bens de primeira necessidade crescentemente escassos.

Acentua-se a perseguição movida a partir do domínio que os EUA exercem sobre o sistema bancário e financeiro internacional, impedindo o Estado venezuelano de, por exemplo, comprar vacinas contra a COVID-19 através do sistema COVAX. Continua o ataque especulativo sobre o Bolívar, a circulação paralela do dólar, a hiperinflação. Assiste-se à acentuada perda de poder aquisitivo dos salários, os direitos dos trabalhadores e do povo venezuelano são atingidos pelos constrangimentos impostos pelo bloqueio aos serviços públicos, aumentam as dificuldades. Mantém-se a imigração de venezuelanos – embora ela não tenha a dimensão que a UE e os EUA têm vindo a brandir.

Há grande carência de investimento e da produção nacional para fazer entrar divisas e suprir os imensos défices produtivos. A questão do uso e posse da terra, num país que tem um grande défice de produção de alimentos, continua a ser uma questão central.

Resistência e solidariedade

A resposta aos desafios terá de se fazer com o povo, com a sua activa participação – perspectiva que a Venezuela Bolivariana conhece – dinamizando a sua organização, mobilização e unidade, junto com a unidade e a convergência das forças políticas e sociais bolivarianas, com a organização e acção dos trabalhadores no processo, com a união cívico-militar, com as necessárias alianças sociais e políticas. Mas os desafios só serão superados com independência e soberania e com relações internacionais baseadas na reciprocidade de interesses, na defesa da Carta da ONU e do direito internacional.

O imperialismo mantém intocável a sua agenda de «mudança de regime» e aponta agora baterias às eleições de governadores e municipais de 21 de Novembro deste ano, falando alguns na possibilidade de um referendo revogatório do presidente Nicolás Maduro em 2022. Os EUA e a UE continuam a apostar na farsa de Guaidó, assim como no papel do governo de extrema-direita colombiano.

Importa sublinhar e valorizar as sucessivas vitórias da Venezuela Bolivariana frente ao imperialismo,a sua capacidade de resistência, os desafios que enfrenta e,sobretudo, os valiosos contributos para a resistência dos povos. Fica o apelo à solidariedade com a Venezuela Bolivariana, com internacionalismo, por eles e por todos nós.