Alterar o regime de arrendamento urbano

Passo decisivo para concretizar o direito à habitação

O direito à habitação deve concretizar-se pela garantia aos cidadãos e famílias de residência que satisfaça as suas necessidade e assegure o seu bem-estar, privacidade e qualidade de vida, garante o PCP, que propõe alterações profundas ao regime do arrendamento urbano.

O direito à habitação, colocado nas mãos do capital financeiro, fica seriamente posto em causa

O Grupo Parlamentar do PCP entregou na sexta-feira, 9, um projecto de lei (ver caixa) que propõe alterações profundas no regime de arrendamento urbano que, no essencial, vigora desde 2012, e que ficou popularmente conhecido como a Lei dos Despejos. Nesse mesmo dia, no salão do Centro de Trabalho Vitória, em Lisboa, foi apresentado o conteúdo fundamental desse projecto, numa sessão pública que contou com a participação do Secretário-geral do Partido. Com ele na mesa estiveram João Ferreira e João Dias Coelho, da Comissão Política, Bruno Dias, deputado e membro do Comité Central, e Lino Paulo, do Grupo de Trabalho da Habitação junto do Comité Central.

Na sua intervenção, Jerónimo de Sousa alertou para a complexidade que hoje assume a consagração universal do direito à habitação (garantido no artigo 65.º da Constituição da República), envolvendo questões relacionadas com a política de solos e ordenamento do território, de edificabilidade, de renegeração, de mobilização do património habitacional público. A tudo isto acresce outro aspecto fundamental: a «financeirização do acesso à casa e, inclusive, à cidade».

A proposta apresentada nesse mesmo dia pelo PCP, esclareceu o dirigente comunista, não visa a solução dos «complexos problemas da habitação no País», mas a resposta a um problema particularmente sério, a solicitar premente intervenção – o do arrendamento. Assim, afirmou Jerónimo de Sousa, se é necessário, «num futuro próximo, ir além do agora proposto», é igualmente essencial que «não se avance com políticas de relançamento do arrendamento sem antes terminar com o actual clima de arbitrariedade e precariedade» que a Lei dos Despejos de Passos Coelho, Paulo Portas e Assunção Cristas generalizou.

O projecto do PCP tem neste um dos seus propósitos fundamentais.

Ao serviço do capital

Se a questão do arrendamento é apenas uma parte do problema da habitação em Portugal, não é parte pequena. Aliás, como afirmou o Secretário-geral, «não será possível solucionar os graves problemas de habitação do País sem um aumento substancial do número de habitações arrendadas e sem uma séria intervenção do Estado enquanto promotor público de uma habitação condigna para todos e de acordo com o rendimento disponível das famílias».

Porém, acrescentou, a exiguidade do parque habitacional de arrendamento prende-se sobretudo com políticas financeiras e com o processo, em curso, de reconstituição dos grupos económicos do tempo do fascismo. Foram estes que, no processo de privatização da banca, receberam a «oferta de milhões de euros sob a forma de bonificação aos créditos bancários na aquisição de habitação». Não espanta, pois, que entre 1970 e 2011 a percentagem de famílias com habitação própria «tenha passado de 49% a 73%» e os fogos no regime de arrendamento tenham caído «de 46% para cerca de 21%».

Ainda nos números, é também revelador que entre 1987 e 2011 o Estado tenha transferido para a banca, sob a forma de bonificações de juros de crédito à habitação, 7047 milhões de euros, o que representa 73,3% de todo o investimento público no sector. Para programas de realojamento foram destinados 1353 milhões e apenas 194 milhões para programas de custos controlados.

Mas nem mesmo os exíguos 21% de habitação arrendada escaparam à gula do capital financeiro, recordou Jerónimo de Sousa, denunciando a «financeirização brutal das políticas de reabilitação urbana». O que se verificou – e verifica – é a apropriação de milhares de imóveis pelo capital financeiro, «alguns em mau estado de conservação, mas muitos ocupados por famílias que pensavam ter, nos seus contratos de arrendamento e no cumprimento dos seus compromissos, a garantia de uma habitação para a vida».

Foi a satisfação desta pretensão do capital financeiro – ver-se livre do obstáculo que a presença dos inquilinos constitui – que levou o governo PSD/CDS (na linha do que o anterior, do PS, encetara) a aprovar a Lei dos Despejos.

Pôr fim à injustiça

A Lei n.º 31/2012 (é esta a sua verdadeira designação) introduziu múltiplos factores de «injustiça, arbitrariedade e conflitualidade» no arrendamento urbano, afirmou Jerónimo de Sousa: «os despejos sucederam-se e, sobre imóveis despejados dos seus moradores, avançou um enorme processo de gentrificação, que gerou angústia em milhares de famílias, alterou vivências colectivas de vida, com impactos diversos, incluindo no associativismo popular, no comércio local tradicional de proximidade, com particular relevo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto».

O fenómeno da «turistificação» intensificou e acelerou este flagelo, promovendo um «aumento galopante das rendas»: em Lisboa, por exemplo, o custo da habitação mais que duplicou nos últimos anos, destacou o Secretário-geral comunista.

O PCP, que se opôs firmemente a esta lei (denunciando os seus propósitos, que a vida confirmou), defende desde sempre a sua revogação. Mas esta intenção tem chocado com a oposição de PS, PSD e CDS. Por mais que na anterior legislatura tenham sido possíveis pequenos avanços, que minoraram alguns dos mais gravosos aspectos da lei, mantêm-se «graves factores de discricionariedade, como o chamado Balcão do Arrendamento, a que o povo chama, e bem, “dos despejos”».

Com a epidemia de COVID-19 e o «agudizar das situações de miséria e exclusão», a resistência dos inquilinos de mais fracos recursos face ao poder dos grupos financeiros dominantes no sector do imobiliário tornou-se ainda mais difícil. Daí a – acrescida – urgência da proposta do PCP.

 

O direito a morar em Lisboa

Quando se fala de carência de habitação, de despejos ou de gentrificação Lisboa surge como caso exemplar. Na sua intervenção na sessão de dia 9, o candidato da CDU a presidente da Câmara Municipal da capital, João Ferreira, referiu-se mesmo à tempestade perfeita que se criou ao nível do direito à habitação.

Nos últimos anos, realçou o membro da Comissão Política, verificou-se um «extraordinário crescimento do turismo, desregulado, não planificado», e a atracção ao mercado imobiliário de «dinâmicas globais de procura e de investimento estrangeiro». Ao mesmo tempo que se acentuou a «financeirização do imobiliário e da habitação», várias zonas da cidade foram transformadas em «locais de consumo e turismo» e o alojamento turístico de curta duração «substituiu gradualmente as funções tradicionais da habitação para uso permanente, o arrendamento a longo prazo e o comércio local tradicional de proximidade».

Denunciando sucessivas gestões PS à frente do município (a actual, com apoio do BE, não é excepção) como sendo «pró-mercado», João Ferreira sublinhou o papel que a Câmara Municipal pode ter na promoção do direito à habitação. Exemplo disso é o Programa Municipal de Arrendamento a Custos Acessíveis, aprovado em 2018 por proposta do PCP mas cuja implementação decorre a um «ritmo muito inferior ao possível e necessário».

Porém, assinalou ainda o vereador do PCP na autarquia lisboeta, «sem prejuízo do que de positivo pode resultar da iniciativa municipal, sobretudo se tivermos outra iniciativa e gestão municipais, o Estado Central tem de assumir as responsabilidades que lhe estão acometidas pela Constituição da República Portuguesa e pela Lei de Bases da Habitação», garantindo dessa forma o direito a morar em Lisboa.

 

«Quem vota a favor?»

O teor do projecto de lei do PCP foi apresentado pelo deputado Bruno Dias, um dos subscritores da proposta, que destacou os seus aspectos fundamentais: extinguir o Balcão do Arrendamento, o famigerado «balcão dos despejos»; impedir a penhora de contas bancárias do inquilino (especialmente na actual situação de pandemia), não obstante a moratória de rendas no arrendamento; garantir acompanhamento social nas situações de despejo e a suspensão dos despejos, sempre que se verifique grave risco social, até que seja encontrada solução alternativa – são alguns dos principais.

Bruno Dias destacou ainda a manutenção da situação de suspensão e entrega dos locados até 31 de dezembro e a defesa da estabilidade e a segurança do contrato, ainda que celebrado a prazo certo, fixando-se uma duração inicial de cinco anos, com renovações automáticas mínimas de três, se nenhuma das partes manifestar a sua oposição na forma e prazo consignado na Lei.

O PCP pretende ainda travar a caducidade do contrato de arrendamento pelo facto de ter sido celebrado com usufrutuário, representante legal, cabeça de casal de herança, tutor, curador, ou figura similar ou, ainda, com base num direito temporário ou em administração de bens alheios. E impedir a recusa, aquando do final do contrato, da devolução das quantias entregues a título de caução. São ainda de revogar as «abusivas exigências, lesivas da privacidade, descanso e sossego do arrendatário, no referente ao mostrar do local locado, quando em situação de final de contrato».

Por mais que não responda a todo o complexo problema da habitação, o projecto comunista não é um mero «contributo simbólico» para esse objectivo, mas uma demonstração plena de que «é possível avançar com as respostas necessárias» e um desafio ao Governo e às restantes forças políticas, realçou Bruno Dias, questionando: «como habitualmente nestas apresentações de propostas legislativas, a pergunta que se impõe agora é muito simples – quem vota a favor?»