Incomunicáveis

Correia da Fonseca

Não é uma incomunicabilidade completa, entenda-se: nesta como em muitas outras matérias a total privação não acontece facilmente, e ainda bem, mas é de recear, talvez até seja provável, que a particular versão de prisão domiciliária que o confinamento constitui acabe por enfraquecer laços de convívio. Ora, o convívio é a condição medular para a vida em sociedade com tudo o que ela pode e deve implicar de entendimento e solidariedade, de caminho para uma permanente percepção de interesses comuns. Um poema antigo e injustamente esquecido dizia-nos: «(…) mas a dureza de viver, que importa, se eu sentir bem na minha a tua mão?». Escreveu-o há muitos anos o Mário Castrim antes mesmo de surgir o Mário Castrim, e nunca será de mais lembrá-lo (como nunca será de mais lembrar o Mário numa coluna de suposta ou efectiva crítica de TV que talvez não existisse sem o seu decisivo precedente). Ora, voltando ao início do texto, repitamos que o convívio é em larga medida o princípio de todas as coisas, e daí partamos para a natural consequência de lhe reconhecer a essa condição e, por consequência, a sua primeiríssima importância.

Mais uma

Como bem se entenderá, este é um dado que bem podemos ter em conta num momento da vida portuguesa em que o convívio está a sofrer um permanente xeque, como se diria se estivéssemos simplesmente a jogar xadrez: o confinamento a que nos obrigam as determinações legais, e em certa medida também o instinto de conservação, impede ou pelo menos dificulta o convívio; e é dele, do convívio que mais naturalmente decorrem a solidariedade, a estima, porventura o sentido da fraternidade. Se do alto da nossa janela olharmos a rua, lá em baixo, e depararmos com uma paisagem urbana desertificada, é quase certo que nos aperceberemos de uma pelo menos parcial desumanização: as pessoas são componente indispensável do mundo em que floresçam sentimentos, projectos, construções comuns, visão do futuro. Por isso o confinamento é um factor de desumanidade embora decretado, e bem, por razões de imperiosa salubridade. Daqui talvez resulte uma necessidade a que será preciso atender: a de preservar vínculos, contactos, fraternidades e sentimentos mesmo em situação de confinamento: «a tua mão, companheiro!» será uma obrigatória palavra de ordem mesmo sob um eventual constrangimento imposto pelo famigerado vírus. Somos gente, somos pessoas, somos mulheres e homens, saberemos vencer mais esta eventual dificuldade que é o confinamento. E somar mais uma vitória.




Mais artigos de: Argumentos

A literatura da Guerra Colonial

No ano de brasa de 1961, em Fevereiro, há sessenta anos portanto, os movimentos de libertação angolanos iniciavam, com o ataque à cadeia de Luanda, a primeira das insurreições armadas que se estenderiam, nos anos seguintes, a outros territórios do império colonial: Moçambique e Guiné. Mais de...

É preciso não esquecer e clarificar águas

«Por cima de tudo, porque mais alto e mais belo, devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das raças inferiores cujo chamamento à nossa civilização cristã é uma das mais altas obras da civilização portuguesa.»Salazar, 1933Em Junho de 1955, podia ler-se na edição...