Bernardo Santareno (1920/1980) – Quem queira mudar a vida
CENTENÁRIO Já nos livros de poesia, Morte na Raiz, de 1954, e Romances do Mar, de 1955, e Os Olhos da Víbora, de 1957, nomeadamente nos «romances», encontramos alguns dos temas que irão estruturar grande parte do teatro de Bernardo Santareno: a solidão, a morte, o medo, a angústia, as paixões trágicas, o amor não correspondido, as injustiças, o fatalismo, a religiosidade, o fanatismo, a homossexualidade, a maldição das margens, a lembrar Genet.
O Teatro é tão velho como o homem.
Está agarrado a ele como o seu duplo(1).
Embora o teatro de Santareno se afaste, na sua iniciação temporal (A Promessa, O Bailarino e A Excomungada são de 1959), do período mais fecundo do neo-realismo, encontramos ainda na sua escrita algumas linhas de concordância com o movimento literário mais importante do nosso século XX: uma implícita denúncia da situação social (A Promessa, O Duelo, O Lugre); a caracterização das personagens e a sua configuração no tecido social (O Pecado de João Agonia, O Lugre, O Crime de Aldeia Velha); uma linguagem alicerçada na prosódia popular, num lirismo barroco, de raiz telúrica e as referências à cultura clássica (António Marinheiro, O Lugre, O Pecado de João Agonia, O Duelo, O Crime de Aldeia Velha); a religiosidade elementar e as crenças tolhedoras, impeditivas de revolta, de aceitação, de sujeição a um destino, fado ou presságio (A Promessa, Anunciação, O Duelo, António Marinheiro, O Crime de Aldeia Velha); paradoxalmente, surge na escrita de Santareno (como acontece em Alves Redol, Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira – e mesmo em Torga) um corpo textual que introduz no drama uma visão histórica, social e dialéctica, épica e de claro sentido marxista (O Judeu, A Traição do Padre Martinho, Português, Escritor, 45 anos de Idade, Os Anjos e o Sangue, O Inferno) e, principalmente, no seu derradeiro texto O Punho, em que a sua posição social e política, a sua luta contra a ditadura, melhor se expressam, dado que livre de grilhetas censórias.
Outro dos temas que aproximam Santareno dos seus companheiros neo-realistas, sobretudo de Redol, vamos encontrá-lo na peça O Duelo (1961), no confronto entre campino e os senhores da terra, disfarçado aqui com a componente erótica, cara a Santareno, transportando nela o trágico das paixões entre classes, que Redol, com preclaro sentido dialéctico, inscreve no seu Barranco de Cegos.
Detectamos igualmente em Santareno, como de resto em grande parte da literatura portuguesa dos anos 1940/50, influências do neo-realismo norte-americano, nomeadamente de John Steinbeck, dos romances O Inverno do Nosso Descontentamento e Vinhas da Ira, este último terá influenciado Alves Redol no seu Vindima de Sangue, último título do Ciclo Port Wine; e Arthur Miller, com Morte de Um Caixeiro Viajante e As Bruxas de Salém, cujos contornos ideotemáticos, referenciais, ambientais, descortinamos igualmente na peça de Santareno O Crime de Aldeia Velha, embora me pareça o texto do autor de O Lugre, mais conseguida em termos de construção teatral, psicológica e na envolvente linguística (o excessivo barroco poético, que é timbre da obra dramática de Santareno, integram-se perfeitamente no febril telúrico do drama, na sua rudeza elementar, na persecução inquisidora), do que no discurso ritualizado, com laivos shakespirianos, do autor norte-americano. No entanto, o enfoque na violência inquisitorial e no fanatismo religioso permanecem como motor conflitual do trágico, em ambos os textos.
Tanto em Miller como em Santareno (Miller elaborou a sua peça seguindo a estética brechtiana; a de Santareno, mantém a divisão aristotélica) denotamos, face à violência que o texto descreve e a sua transposição para o corpo dos actores, alguma aderência às ideias de Antonin Artaud sobre o significado da verdade no teatro, e a criação transformadora do corpo do actor como «matéria viva» (Artaud, O Teatro e o seu Duplo,1964) capaz de nos transmitir a verdade substantiva que nele, teatro, possa haver, e a crueldade dessa revelação.
Mesmo com toda a violência verbal, e a sua provável transposição física, que Santareno e Miller procuraram introduzir nos seus textos, ambos comungavam do método de «distanciação» de Brecht, reformulada por Meyerhold: era necessário criar mecanismos, cenográficos e interpretativos, que levassem o público a não se esquecer de que estava no teatro. A reposição, no teatro D. Maria II, em 1996, de O Crime de Aldeia Velha, numa encenação de Carlos Avilez, a cenografia de José Rodrigues e a música de Carlos Zíngaro, cumpriam, segundo Urbano Tavares Rodrigues, esse processo.
Bernardo Santareno foi nos seus primeiros textos dramáticos, influenciado - na linguagem, nos excessos temáticos, na estrutura dramática, no subjacente erótico -, pelo teatro de Federico García Lorca. De resto, os poetas da primeira vaga neo-realista, como Armindo Rodrigues, Manuel da Fonseca, algum Namora (Terra), foram igualmente influenciados pela imagética telúrica dos espaços, pelas componentes populares e pelo ritmo melódico e avassalador do verbo lorquiano.
Os elementos do imaginário poético, o misticismo, o sentido ritualista, de presságio e transcendência, as forças ocultas, as premonições, o fascínio pelo mistério da nossa condição, as crenças ancestrais, as paixões redutoras e trágicas, o sangue como elemento simbólico do drama e um sentido agudo dos elementos como componentes da acção, herdados da tragédia grega (sentido que o autor subverte, como acontece em António Marinheiro: Amália nega-se ao suicídio, ilidindo assim a consumação da tragédia) e um gongorismo elementar, aproximam o teatro de Santareno de peças como A Casa de Bernarda Alba, Yerma ou Bodas de Sangue, ou ainda, num sentido mais amplo do discurso político, na sua subliminar metáfora, de autores como Alfonso Sastre (de resto contemporâneo de Santareno), em peças como A Mordaça ou Guilherme Tell Tem os Olhos Tristes.
O tema da homossexualidade, que Redol também aborda no romance O Muro Branco, tem uma forte componente de análise social e psicológica (e de revolta contra os anátemas do preconceito, que Santareno corajosamente denuncia e combate), nas peças O Pecado de João Agonia, A Confissão, Monsanto e, em esboço inexplícito, em António Marinheiro. Santareno foi o primeiro dramaturgo português a trazer para uma obra dramática, de forma séria e socialmente relevante, um tema fracturante.
A universalidade do teatro de Bernardo Santareno, o seu mais nítido contacto com os grandes dramaturgos do século XX, de Lorca a Brecht, de Fassbinder a Sastre, de Tennessee Williams a Romeu Correia e Redol, consubstancia-se, para além da especulação temática e num discurso que visava as mesmas componentes sociais, que os aproxima, sendo esta vertente ideotemática, de intervenção sobre o real, mais nítida nos textos da última fase da criação teatral de Bernardo Santareno, em peças como Português, Escritor, 45 Anos de Idade, na qual o autor, dialecticamente, expõe as suas memórias autobiográficas:
«PAI: Foste sempre boa. Uma grande mulher!
MÃE: Mas não fui capaz de ser a companheira da tua luta... Não compreendia, não sentia. Tudo isso – política, republicanos, revoluções – tudo isso me repugnava. Às vezes, odiava os teus amigos tanto que... todo o mal me parecia pouco para eles! Eram eles que te levavam de casa, que te metiam nos sarilhos, que me faziam o pior mal. Agora tudo está certo. Tanto me faz.
PAI: Combatia pela liberdade, pela justiça...
MÃE: A mim, a única coisa que sempre me pareceu justa era ter-te a meu lado, para ambos criarmos o nosso filho. Em paz, com alegria.
PAI: Há coisas maiores do que isso, mulher!
MÃE: Para mim, não. Perdoa-me.
PAI: Mas o nosso filho compreendeu o meu sacrifício. Tem as minhas ideias, vai continuar a minha luta...»(2)
O Judeu (considerada a sua obra-prima); Os Marginais e a Revolução e em O Punho (peça publicada em 1987, sete anos após o falecimento do autor, sem ter, até hoje, transposição cénica), texto em que Santareno se debruça de forma muito explicita e conceptualmente interventiva, à que foi a mais bela conquista da Revolução de Abril: a Reforma Agrária. O Punho terá hoje, dia 19 de Novembro, estreia absoluta pela Escola de Mulheres, sendo esta a última encenação da nossa querida Fernanda Lapa, à qual devemos o projecto que visava dar dimensão nacional às Comemorações do Centenário, gizando um vasto e ambicioso programa, em parte frustrado pela pandemia, e pela escassez de apoios estatais.
O desejo, encarado por Santareno, Fassbinder, Lorca, Tennessee Williams e Genet como uma maldição, motivo e origem de todas as perseguições, inquisições e morte (loucura, desvario psíquico, em que as teses de Freud dominavam, como em Williams), serve ao autor de A Promessa como metáfora e denúncia em relação à ausência de liberdade, à opressão e à intolerância - tal como o fez na abordagem da sexualidade. É neste afrontamento crítico, através de signos sociológicos, que a escrita de Santareno se afirmou contra os códigos vigentes, contra a censura e pôde, sagaz, inscrever no seu teatro um amplo sentido libertário, de justiça e de dignidade do humano.
O teatro de Santareno pela sua estrutura, do aristotélico inicial, ao épico brechtiano da segunda fase (convergindo aqui com autores como José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Alves Redol e Miguel Franco), ou ao popular revisteiro da última fase; pela linguagem, a um tempo lírica e telúrica, excessiva nas suas reverberações semânticas; pela universalidade, pelo modo singular como trata e tematiza os conteúdos (a solidão, os medos, o místico, o desejo, a morte, o erótico), tornam a sua escrita, o seu teatro, não apenas de ressonâncias ibéricas, ou limitado a um universo de cultura latina ou mediterrânea, mas de clara expressão universalista.
As influências brechtianas em O Judeu, são evidentes, quer na sequência e estrutura das cenas, na elaboração do discurso dramático, quer no efeito “distanciador” que percorre o texto, sobretudo nas falas, em confronto dialéctico, de Cavaleiro de Oliveira e do Inquisidor-Mor, na sequência dos efeitos dramáticos, na introdução de excertos das peças de António José da Silva, em que estão presentes elementos caros ao autor de Mãe Coragem e os Seus Filhos: a pantomima, o teatro dentro do teatro, o jogo lúdico, as recitações (de Júpiter, p.ex.), as intromissões das falas do povo, como acontece em O Destino Morreu de Repente, de Redol, ou em O Render do Heróis, de José Cardoso Pires.
Apesar da componente factual e histórica, da explícita denúncia das injustiças e da opressão, que remete para a ditadura salazarista através do processo inquisidor, e arbitrário, contra o «Judeu», que o condenou à fogueira, o que Santareno pretendeu através destes mecanismos estéticos, próprios do épico anti-aristotélico e dialéctico, foi impedir que um qualquer processo de empatia se estabelecesse entre o palco e o público, para que este pudesse «decidir» e analisar conscientemente sobre a realidade que percepcionava.
Lamentável é que um dramaturgo desta dimensão, genial, excessivo e incómodo, raro no panorama da nossa dramaturgia contemporânea, continue a ser ignorado pelos nossos Teatros Nacionais, aos quais deveria caber, como função primordial, a de projectar, defender e encenar (dar a ver), os grandes nomes do nosso património dramático – entre quais Santareno tem, sem dúvida, lugar de relevo.
Miséria desde o berço,
A canga até morrer:
A fome tem o seu preço;
Ninguém nos fica a dever.
Tem preço a fome sofrida,
Alguém o há-de pagar:
Quem queira mudar a vida,
Por força tem de lutar.
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(1) Jean-Louis Barroult, Nouvelles Reflexons su le Théatre, citado por Redondo Júnior, in Panorama do Teatro Moderno, Arcádia, 1961, p.38
(2) Obras Completas de Bernardo Santareno, 4º. Volume, p. 51, Caminho, Lisboa 1987. Português, Escritor, 45 Anos de Idade, foi estreada a 5 de Julho de 1974, no Teatro Maria Matos, numa encenação de Rogério Paulo.