Quino, o outro lado do espelho da Mafalda

Manuel Augusto Araújo

Ma­falda torna-se ra­pi­da­mente na mais fa­mosa co­men­ta­dora po­lí­tica sobre o mundo

Há que lem­brar que a ca­ri­ca­tura, dado os an­gli­cismos cor­rentes agora co­nhe­cida por car­toon, é um im­por­tante sector das artes plás­ticas – que ocupou desde sempre um es­paço ex­pres­sivo na ac­ti­vi­dade jor­na­lís­tica – pra­ti­cado por grandes ar­tistas como Ho­noré Dau­mier, Jean-Louis Fo­rain, Wil­lheim Bush, Ge­orge Grosz, John He­art­field, Ro­bert Os­born, Fe­liks To­polski, James Thuber, Saul Stein­berg, André Fran­çois, David Le­vine, por cá Bor­dalo Pi­nheiro, Stuart Car­va­lhais, João Abel Manta.

Uma lista mais que re­su­mida, es­cassa pe­rante a grande quan­ti­dade e qua­li­dade dos muitos que com os car­toons mar­caram e marcam pre­sença em todo o mundo. Se os per­cursos ar­tís­ticos e as op­ções es­té­ticas os dis­tin­guem há um traço firme comum a todos, os re­fe­ridos e os muito mais que se po­de­riam re­ferir, que é o darem tes­te­munho do seu tempo ti­rando a tem­pe­ra­tura ao seu es­tado so­cial e po­lí­tico, aos seus de­sas­tres, ao seu gro­tesco, aos seus ví­cios, com ela­bo­rado humor, vastas iro­nias, mesmo vi­trió­lica veia sa­tí­rica.

Cada car­toon, com golpes mais cer­teiros e de­vas­ta­dores que os golpes ci­ne­ma­to­grá­ficos de kung-fu de Bruce Lee, con­tribui para traçar um ca­dastro ir­re­ve­rente e im­pla­cável da me­di­o­cri­dade e das hi­po­cri­sias deste nosso mundo. O car­toon, na sua apa­rente efe­me­ri­dade, sempre li­gado a um su­cesso tem­po­ral­mente da­tado, na sua lin­guagem, por vezes sim­plista para ad­quirir maior le­gi­bi­li­dade, ar­risca-se àquela clas­si­fi­cação de ser uma arte menor, uma tre­menda in­jus­tiça até porque isto de artes mai­ores e me­nores tem muito que se lhe diga no seu tem­pero eli­tista. O car­toon é uma re­por­tagem do quo­ti­diano que se li­berta dos ca­len­dá­rios para trans­mitir, de um ou outro modo, uma men­sagem po­li­ti­ca­mente uni­versal e in­tem­poral.

Olhar crí­tico sobre o mundo

Quino ins­creve-se por di­reito pró­prio nessa longa lista de ca­ri­ca­tu­ristas, es­pe­ci­a­listas do raio-X que aplicam à so­ci­e­dade ra­di­o­gra­fando-a im­pla­ca­vel­mente. Ad­quire ce­le­bri­dade quando, em 1964, faz Ma­falda sair da banda de­se­nhada de uma casa tí­pica de uma fa­mília bur­guesa de classe média que iria com­prar uns ele­tro­do­més­ticos, para a tornar na cé­lebre con­tes­ta­tária que, com o seu humor cor­ro­sivo e negro, não deixa pedra sobre pedra do edi­fício da re­a­li­dade so­cial e po­lí­tica desta so­ci­e­dade sem dig­ni­dade fun­dada na ex­plo­ração hu­mana.

Con­tes­ta­tária com um lado muito ter­reno de de­testar sopa, adorar os Be­a­tles, expor per­ple­xi­dades fi­lo­só­ficas a olhar para o globo ter­restre, torna-se ra­pi­da­mente na mais fa­mosa co­men­ta­dora po­lí­tica sobre o mundo, a luta de classes, as ti­ra­nias, o ca­pi­ta­lismo. Re­co­nhe­cida em qual­quer canto do mundo, Ma­falda quase oculta o tra­balho do seu cri­ador Quino que, em pa­ra­lelo à ra­pa­riga con­tes­ta­tária, con­ti­nuava a fazer ou­tras bandas de­se­nhadas, ex­ce­lentes mas com menos vi­si­bi­li­dade, como se pode ver em Por­tugal no ano de 2014, no Fes­tival Ama­dora BD.

Ma­falda não en­ve­lhece, es­palha o nome e o tra­balho de Quino pelo mundo, até o seu cri­ador a calar con­ti­nu­ando o seu tra­balho de car­to­nista, óp­timas tiras de banda de­se­nhada em­bora longe do es­tre­lato da Ma­falda. Quino deixou de de­se­nhar Ma­falda em 1973. Co­menta o a tê-la si­len­ciado por estar ex­te­nuado com essa sua cri­ação, mais co­nhe­cida que o seu cri­ador, não dei­xando de dar uma pista para não mais a en­con­trarmos: «pro­va­vel­mente es­taria morta, seria um dos de­sa­pa­re­cidos da di­ta­dura mi­litar ar­gen­tina»(1). Ma­falda até ao fim da sua vida teve sempre a lu­mi­nosa lu­cidez crí­tica po­lí­tica de Quino, para quem o mundo ac­tual «é um de­sastre, uma ver­gonha» que dissecoucom o bis­turi do seu lápis.

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(1) A di­ta­dura ar­gen­tina im­posta por um golpe de es­tado em 1976, che­fiado pelo ge­neral Vi­dela, al­mi­rante Mas­sera e bri­ga­deiro Agosti, foi pre­pa­rada com co­la­bo­ração ac­tiva dos EUA. Brutal, durou até 1983 pe­ríodo du­rante o qual «de­sa­pa­re­ceram» 30 000 ar­gen­tinos. Kis­singer apoiou-a e de­fendeu-a em vá­rios areó­pagos in­ter­na­ci­o­nais para não deixar dú­vidas sobre o que re­pre­sentam os di­reitos hu­manos para os EUA.




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