Catarina
«Vamos entrar num mundo que não é bem o nosso, mas onde encontramos muitas semelhanças com o nosso, apesar de tudo. É uma metáfora da impotência da democracia face à ameaça fascista». É assim que Tiago Rodrigues, encenador, dramaturgo, actor e director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, se refere à sua peça Catarina e a beleza de matar fascistas, estreada no último sábado. Uma peça, diz, «que nos coloca num contexto imaginário, ficcionado, para pensarmos sobre as nossas vidas e sobre o que poderá ser o futuro se não tivermos cuidado e não reflectirmos e agirmos no presente».
Se este convite à reflexão seria sempre oportuno, o facto de acontecer agora confere-lhe particular acuidade. Surge quando a comunicação social dominante apresenta como caricato, mas inócuo, o espectáculo da eleição da direcção do Chega, repetida três vezes até dar o resultado pretendido, com um nome a mais e 105 votantes a menos. Aos paladinos dos processos democráticos não choca que de 510 delegados inscritos tenham começado por votar 378, depois 340 e finalmente 273... A «notícia» foi a grande maioria, com 247 votos a favor da direcção de Ventura – celebrada pelo líder de joelhos, no palco –, ou seja cerca de 90% dos votos. Um sucesso idêntico ao do líder, de resto, escolhido por 99% dos votos em eleições directas, como repetidamente tem sido referido, deixando de lado o pormenor de no escrutínio só terem votado 40% dos inscritos.
A complacência com um partido de extrema-direita, radical, populista, racista, xenófobo, homofóbico; um partido que se assume «securitário», da «direita identitária», que defende uma «política comum de defesa contra a invasão maciça dos países do Sul do Mediterrâneo» e a abolição das «autorizações de residência para “proteção humanitária”»; que advoga o estabelecimento de uma «lista de países seguros na origem»; que quer reconstruir o regime e instalar a IV República; tal complacência, dizia, ou é deliberada, e perigosa, ou inconsciente, e ainda mais perigosa.
Aos poderes instituídos dá jeito a rábula do politicamente correcto que prega a tolerância, como se tolerar tudo, até os intolerantes, não nos tornasse cúmplices da intransigência. Com o fascismo ocorre algo parecido. Pode a democracia tolerar os que a querem destruir? Pode a liberdade de imprensa que branqueia os chegas e venturas destes tempos ser um pilar da democracia?
Catarina e a beleza de matar fascistas sobe à cena quando o presidente da CIP, António Saraiva, assume a chefia da Global Media (DN, JN, TSF, O Jogo), comprada por Marco Galinha, o empresário que em 2018 comprou a empresa de Saraiva, a Metalúrgica Luso-Italiana (MIL), então com dívidas perto dos 5 milhões.
«Levamos a tragédia ao palco para não termos que a viver na vida», diz Tiago Rodrigues. Oxalá.